Circula nas redes sociais uma publicação em que se alega que o Papa Francisco propôs, numa mensagem divulgada a propósito da Quaresma deste ano, que os católicos substituam o “jejum de carne” por “15 ações simples de caridade”.
A lista de “ações simples” inclui propostas como “cumprimentar” pessoas “sempre e em todo o lugar”, “dar graças”, lembrar aos outros “o quanto você os ama”, “cumprimentar com alegria” as pessoas que se vê todos os dias, ouvir os outros “sem pré-julgamentos”, parar para ajudar e estar “atento a quem precisa”.
Outras ações como “animar alguém”, “comemorar as qualidades e os êxitos do outro”, “separar o que não usa e doar a quem necessita”, “ajudar quando necessário para que o outro descanse”, “corrigir com amor, não calar por medo”, “ter boas relações com os que estão perto”, “limpar o que usa em casa”, “ajudar os outros a superar obstáculos” ou “telefonar” aos pais são incluídas entre o grupo de atos que podem substituir o jejum quaresmal.
Algumas versões da publicação consultadas pelo Observador incluem ainda uma outra lista, de possíveis “jejuns”, incluindo o jejum de “palavras ofensivas”, “descontentamentos”, “ira”, “pessimismo”, “preocupações”, “queixas”, “pressões”, “tristezas e amarguras”, “egoísmo”, “falta de perdão” e “palavras”.
“Grande sabedoria do Papa Francisco nessa proposta de Quaresma, por isso, a compartilho com gosto”, lê-se ainda na publicação.
Apesar de, em teoria, nenhuma destas boas ações sugeridas na publicação contrariar propriamente os princípios cristãos ou a doutrina católica, esta publicação não corresponde à verdade: o Papa Francisco não formalizou qualquer sugestão para que, durante a Quaresma, o jejum de carne seja substituído por estas ações.
A publicação começou a circular a propósito do início da Quaresma deste ano, que começou no dia 14 de fevereiro — um dia conhecido, no calendário litúrgico, como Quarta-Feira de Cinzas. Trata-se do arranque formal do período de quarenta dias que antecede a celebração da Páscoa (que este ano calha a 31 de março) e que, de acordo com o Catecismo da Igreja Católica, serve para que os fiéis católicos recordem os 40 dias que Jesus Cristo teria passado em jejum no deserto antes de iniciar a sua pregação.
É um período que a Igreja Católica dedica à preparação espiritual para as celebrações da Páscoa, consideradas o ponto alto do ano litúrgico.
Nas regras da disciplina tradicional da Igreja, que estão plasmadas nos cânones 1249-1253 do Código do Direito Canónico, os dias da Quaresma são considerados “dias de penitência”, tal como todas as sextas-feiras do ano (por serem o dia em que se acredita que Jesus Cristo morreu). Os dias de penitência são dias em que os fiéis se dedicam “à oração”, fazem “obras de piedade e de caridade” e se abnegam “a si mesmos”, incluindo através do jejum e da abstinência.
A abstinência consiste em não comer carne ou, então, outro alimento que seja determinado pela Conferência Episcopal de cada lugar. O jejum, por outro lado, consiste em comer apenas uma refeição no dia, e aplica-se apenas a fiéis maiores de idade e até aos 60 anos. Apesar destas determinações, há também no seio da Igreja Católica interpretações menos ortodoxas da disciplina do jejum e da abstinência, defendendo que o tempo da Quaresma deve, na verdade, ser um período em que os católicos se privam conscientemente de luxos para se focarem no essencial.
Todavia, não é verdade que o Papa Francisco tenha publicado uma mensagem para a Quaresma de 2024 a propor que os católicos troquem o jejum por uma lista de 15 boas ações.
Na verdade, basta ler a mensagem da Quaresma de 2024 do Papa Francisco, que consta do site do Vaticano, para perceber que nada do que está na publicação em causa faz parte do texto do Papa Francisco. A única referência do Papa ao jejum é a seguinte: “É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo. Por isso, oração, esmola e jejum não são três exercícios independentes, mas um único movimento de abertura, de esvaziamento: lancemos fora os ídolos que nos tornam pesados, fora os apegos que nos aprisionam. Então o coração atrofiado e isolado despertará.”
Por outro lado, não há qualquer vestígio desta lista de 15 boas ações alegadamente sugeridas pelo Papa no site do Vaticano, onde constam todas as intervenções oficiais do chefe da Igreja Católica.
A única ligação remota que o Observador conseguiu estabelecer entre o conteúdo desta publicação e as palavras reais do Papa Francisco remete para uma homilia feita pelo líder dos católicos no dia 20 de fevereiro de 2015. Falando de improviso na missa diária que celebra na capela da Casa de Santa Marta, no Vaticano, Francisco apelou à coerência dos católicos e salientou — de acordo com uma notícia da Agência Ecclesia — que de pouco servem as “observâncias exteriores” das práticas religiosas se não houver “verdade do coração”.
“O verdadeiro jejum não é somente exterior, uma lei externa, mas deve vir do coração”, afirmou o Papa. “Não é somente deixar de comer carne sexta-feira, fazer alguma coisinha e depois, deixar aumentar o egoísmo, a exploração do próximo, a ignorância dos pobres.”
A versão registada pelo Osservatore Romano inclui mais detalhes dessa homilia. Lê-se no texto do jornal oficial do Vaticano:
Para tornar mais concreta a sua reflexão, Francisco citou o exemplo de quem pratica o jejum quaresmal pensando: “Hoje é sexta-feira, não se pode comer carne, comerei um bom prato de marisco, um bom banquete… Eu observo… não como carne”. Mas assim — disse logo a seguir — “pecas de gula”. De resto, é precisamente “esta a distinção entre o formal e o real” de que fala a primeira leitura litúrgica, tirada do livro do profeta Isaías (58, 1-9a). No trecho as “pessoas lamentam-se porque o Senhor não ouvia os seus jejuns”. Por seu lado o Senhor reprova o povo, com as palavras que o Pontífice resumiu do seguinte modo: “No dia do vosso jejum, vós ocupais-vos dos vossos negócios, oprimis os vossos operários. Jejuais entre litígios e contendas e dando punhos iníquos”. Por isso “este não é jejum, não comer a carne mas depois fazer todas estas coisas: zangar-se, explorar os operários” e assim por diante.
Também Jesus, acrescentou Francisco, “condenou esta proposta da piedade nos fariseus, nos doutores da lei: fazer muitas observâncias exteriores, mas sem a verdade do coração”. Com efeito, o Senhor diz: “Não jejueis como fazeis hoje, mudai o vosso coração. E qual é o jejum que eu quero? Desatar as correntes iníquas, eliminar os vínculos do jugo, mandar os oprimidos em liberdade, dividir o pão com o faminto, introduzir em casa os miseráveis, os desabrigados, vestir um necessitado sem descuidar os teus parentes, fazendo justiça”. Isto, esclareceu o Papa, “é o jejum verdadeiro, que não é apenas exterior, uma observância exterior, mas um jejum que vem do coração”.
Ainda assim, esta reflexão do Papa sobre a importância da coerência entre as práticas formais e as verdadeiras intenções não corresponde à publicação que está a circular e que lhe atribui “15 ações simples de caridade” para substituir o jejum quaresmal.
Conclusão
A publicação é falsa. O Papa Francisco não propôs “15 ações simples de caridade” para substituir o jejum de carne durante o período da Quaresma na sua mensagem para o período deste ano. É verdade que o Papa Francisco, pelo menos numa ocasião, já fez uma homilia em que apelou à coerência entre as práticas religiosas exteriores, como o jejum, e as intenções verdadeiras do coração. Mas esse apelo não correspondeu, de todo, àquilo que a publicação em causa alega.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.