Várias imagens de igrejas em chamas e uma afirmação clara: “França — Em 10 meses, 10 monumentos queimados!!!”, acompanhada de um emoji de boca aberta, em sinal de espanto. O post prossegue com uma enumeração das várias Igrejas “queimadas” ao longo dos últimos meses, a começar pela catedral de Notre-Dame de Paris, em abril de 2019. Seguem-se Saint-Sulpice (março), Saint-Alain de Lavaur (fevereiro), Santiago de Grenoble (janeiro), Sagrado Coração em Agulême (janeiro). A publicação termina dizendo que “impera o silêncio” sobre estes incidentes e que, se acontecessem em mesquitas, “todos os meios de comunicação não iriam parar de falar sobre isso”. O tom subjacente é de que estes serão ataques direcionados.

O post em causa levanta uma série de questões. Foram de facto queimadas dez igrejas em dez meses em França? Os casos apontados aconteceram de facto? E todos estes incêndios foram fogo posto?

A alegação levantada por esta publicação, que já conta com mais de mil partilhas, é semelhante a outras estatísticas que têm sido lançadas na internet, com algumas variações, sobre atos de vandalismo sobre igrejas em França e, particularmente, incêndios. A ideia subjacente a todas é a de que estará a haver uma onda de atos premeditados de ataque a igrejas católicas, que tem passado despercebida por preconceito dos media. Essa onda teria culminado no incêndio de Notre Dame, levantando a suspeita de que se poderia ter tratado de fogo posto.

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Uma igreja queimada por mês? Não há dados para afirmar isso

Vamos aos factos. Os dados disponibilizados pelo Ministério do Interior francês em fevereiro de 2019 dão conta de 1.063 “atos anti-cristãos” perpetrados no ano anterior — um valor semelhante ao de 2017, que se ficou pelos 1.038. Segundo a France 24, isso dá uma média de três atos por dia.

O problema é que, como aponta o Libération, o Ministério do Interior fala apenas em “atos”, não especificando que tipo de ações estão em causa e quantos deles são incêndios. O Ministério especifica que, dos cerca de mil atos, apenas 100 configuram ações violentas. “Dois terços dos casos dizem respeito a edifícios religiosos, sendo o restante terço relacionado com cemitérios”, esclareceu a mesma fonte. Questionado pelo jornal, o Ministério não quis dar mais detalhes, “para evitar que sejam manipulados” e para prevenir “risco de crescimento da violência”.

Isto significa que, dentro desta estatística, atos como graffiti na fachada de uma igreja, a destruição de material religioso ou uma ação de fogo posto são colocados dentro do mesmo bolo.

Olhando em particular para os incêndios, um dos poucos locais que faz essa recolha de informação é o site Observatoire de la Christianophobie — que, de acordo com o jornal de esquerda Libération, é gerido por Guillaume de Thieulloy e Daniel Hamiche, conhecidos ativistas católicos conservadores. Na página, é possível recuar até julho de 2018 — os últimos dez meses, como é mencionado no post de Facebook — e ver que casos de incêndios em igrejas foram assinalados. Ao todo há 14 casos deste então, assinalados no site, o que dá uma média de cerca de um caso por mês — o que pode justificar o número apontado no post de um monumento queimado por mês nos últimos dez.

Incêndios são noticiados, mas nem sempre origem é intencional

O problema? Nem todos os fogos registados no Observatoire de la Christianophobie cabem exatamente na narrativa de que as igrejas católicas andam a ser alvo de incêndios premeditados em França. Há casos como o incêndio de uma carrinha de um padre (e não de uma igreja) cujas origens não são conhecidas, ou o incêndio na igreja de Hombourg-Haut que afinal foi nos arbustos do parque de estacionamento. 

Já para não falar que não é certo que haja suspeitas de ações criminosa em todos estes incidentes. Basta olhar para os casos mencionados no post de Facebook em causa. O incêndio na igreja do Sagrado Coração em Angoulême foi destacado na página da paróquia onde se deu conta do mesmo, onde não há qualquer alegação sobre se pode tratar-se de fogo posto ou de um acidente. A France 24, contudo, diz que a polícia pensa que pode ter-se tratado de um incidente intencional.

No caso de Santiago de Grenoble, o incêndio foi noticiado, mas como explica o La Croix, este terá tido origem num problema elétrico, como confirmou o próprio vigário de Grenoble, Loïc Lagadec.

A catedral de Lavaur é, provavelmente, o caso entre os apontados que mais parece afigurar-se como um provável fogo posto, de acordo com os vários relatos nos media.

Quanto à igreja de Saint-Sulpice, em Paris, há dúvidas. Inicialmente, a polícia afirmou que poderia tratar-se de um ato deliberado, com uma fonte policial a afirmar ao Le Parisien que “as vestes não pegam fogo sozinhas”. Mas essa narrativa seria contestada pelo próprio padre da paróquia, Jean-Loup Lacroix. Em entrevista ao Le Point, confirmou que a igreja foi atacada, mas que o incêndio “ocorreu na porta do edifício” e que “nenhum objeto de culto foi atacado”. “Não podemos falar de profanação, este não é um ataque anti-religioso”, afirmou.

Certo é que, se estatisticamente é difícil perceber qual a regularidade de focos de vandalismo intencional a igrejas francesas, estes e outros incidentes de possíveis ataques deliberados como incêndios não têm sido escondidos. Ainda em março, o Figaro falava “num inquietante vandalismo” perante as igrejas francesas.

Relação com Notre Dame não faz sentido. Investigação aponta para acidente

A multiplicação de posts nas redes sociais a dar conta de uma alegada onda de fogo posto a igrejas cristãs, porém, deu-se sobretudo após o incêndio na catedral de Notre Dame de Paris, estabelecendo uma ligação implícita entre os factos, como se a própria Notre Dame pudesse também ter sido vítima de um ato deliberado.

Isso mesmo disse claramente o ex-líder da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen: “O incêndio de Notre Dame é um incêndio criminoso”, afirmou, referindo-se “ao material usado” e “à propagação da chama” como provas.

A ideia foi reforçada por outras figuras da direita francesa, como o membro da União Nacional (ex-Frente Nacional) Jean Messiha. “Fontes falam em dois focos de fogo” , escreveu no Twitter . “Se esta informação for confirmada, a tese do acidente torna-se instável.” Também Philippe Karsenty, vereador de Neuilly sem partido que apoiou o candidato dos Republicanos François Fillon nas presidenciais, afirmou numa entrevista à Fox News que este era “o 11 de Setembro francês” e que “o politicamente correto” iria tentar fazer crer que tudo não passava de um acidente.

Também cidadãos anónimos partilharam diversas teorias da conspiração, como recorda a RTL. Foi o caso da de um homem de “colete amarelo” perto de um telhado — que era na realidade um bombeiro — ou outra pessoa a observar o fogo num telhado vizinho — que não passava de uma estátua.

A investigação preliminar, contudo, não aponta para nenhum tipo de ato deliberado, mas sim para um acidente. Apesar das inúmeras falhas de segurança no local, tanto o procurador de Paris, Rémy Heitz, como o ministro da Cultura francês, Franck Riester, defenderam o contrário, dizendo que “nada aponta na direção de um ato criminoso”. Informação divulgada ao Canard Enchaine diz que a investigação está agora inclinada para a possibilidade de “um curto-circuito”.

Conclusão

Não há dúvida de que as igrejas católicas em França têm sido vítimas de vários ataques de vandalismo no último ano. Contudo, os números mostram que esse é um nível semelhante ao que já tinha ocorrido em 2017.

Por outro lado, não é possível perceber quantos desses ataques são incêndios. E, dentro dos incêndios que são noticiados, nem sempre é certo quais são fruto de fogo posto e quais são resultado de um acidente.

Assim sendo, não é possível confirmar a afirmação de que têm sido queimadas igrejas ao ritmo de uma por mês nos últimos dez meses, embora seja certo que algumas terão sido.

Já quanto à ligação ao incêndio de Notre Dame, que espoleta publicações como esta, é totalmente forçada. Isto porque, na investigação que decorre, ainda não houve qualquer pista divulgada que aponte para o cenário de fogo posto.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

Inconclusivo 

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

MISTO: As alegações do conteúdo são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou incompleta.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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