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“Os violinos envelhecem como o vinho do Porto” |
A semana passada dirigi um concerto em que me coube acompanhar um solista com orquestra. Até aqui nada de novo. O extraordinário é que esse solista, o romeno Alexandru Tomescu, toca num violino feito em 1702 pelas mãos de Antonio Stradivari. Isto aconteceu em Bucareste e vou contar-vos porque é que me deu a ideia para esta newsletter. |
Nunca toquei um instrumento de arco mas nem por isso deixa de me interessar o mundo dos luthiers. Pensar que cada instrumento destes é único, ao mesmo tempo perfeito e imperfeito à sua maneira e com a sua personalidade própria, é algo que considero fascinante. Para além disso, os violinos envelhecem como o vinho do Porto, com a diferença de que já existiam antes e muitos deles ainda estão aí para as curvas, podendo ser apreciados por incontáveis ouvintes, ao passo que um Porto centenário só pode ser saboreado pelos poucos sortudos que o abrirem. |
Até um leigo já ouviu falar no nome de Stradivari (não confundir com a marca de roupa Stradivarius), que está ligado à cidade italiana de Cremona e a um período de ouro na história da construção de violinos. |
É difícil dizer que Stradivari é o non plus ultra porque na verdade existe uma trindade de dinastias de luthiers que dão pelos nomes Stradivari, Amati e Guarnieri, com a tradição a ser passada de pai para filho. No total, chegaram aos dias de hoje cerca de seis centenas de instrumentos feitos na oficina de Stradivari, o que corresponde a aproximadamente metade do total que o famoso luthier terá feito em toda a sua longa vida, pois morreu passados já os 90 anos de idade. |
O ponto áureo da arte destes artesãos acontece no período entre o fim do século XVII e o começo do século XVIII. A maior parte dos instrumentos com este pedigree pertence a fundações, museus ou estados que os tornaram tesouros nacionais, mas também os há em colecções privadas e até bancos e fundos de investimento. Apenas alguns, muito poucos, são de facto pertença pessoal de solistas. A razão é simples: cada instrumento destes custa uma fortuna e não é todos os dias que aparece um para venda no mercado. |
Ao atravessarem os séculos, estes instrumentos vão passando por diferentes mãos que os tornam ainda mais mais famosos e desejáveis, ganhando alcunhas e passando à história da música como intervenientes de pleno direito. Um exemplo é “O Canhão”, um violino da oficina de Giuseppe Guarnieri, conhecido por “del Gesù”, que foi imortalizado por Niccolò Paganini, que tocou nele durante décadas e que o doou em testamento à sua cidade natal de Génova, onde hoje se encontra em exibição no Palazzo Doria Tursi [na imagem desta newsltter], sendo mantido em condições de ser tocado, coisa que acontece ocasionalmente, passando pelas mãos de alguns solistas de renome ou vencedores do Prémio Paganini. |
Para estes instrumentos tão especiais, existem duas existências mais comuns: há aqueles que estão bem conservados e são tocados regularmente, normalmente em regime de empréstimo aos melhores violinistas do mundo, e há aqueles que são mais frágeis ou por alguma razão já não servem para tocar, que costumam estar expostos em museus. O nosso Museu Nacional da Música, por exemplo, possui não um violino, mas um violoncelo Stradivari, caso bem raro, que pertenceu ao rei D. Luís I, violoncelista amador. Por essa razão, tem a alcunha “Chevillard-Rei de Portugal”, e tem o estatuto de Tesouro Nacional. Ocasionalmente, este violoncelo abandona o seu lugar atrás da vitrine e pode ser visto e ouvido ao vivo, como aconteceu em 2015 e 2017 na Fundação Calouste Gulbenkian com Pavel Gomziakov, ou em 2017 no Museu Nacional da Música, com a violoncelista Maria José Falcão. |
É aqui que a história destes instrumentos bifurca e se torna uma interessante metáfora. Se forem bem cuidados e escaparem a acidentes, modificações ou restauros danosos ao longo dos séculos, violinos com trezentos anos ou mais de existência prestam-se perfeitamente a serem tocados hoje em dia. Na verdade, não só se prestam como são os melhores violinos que há e os luthiers modernos aprendem a sua arte estudando e copiando os modelos dos mestres do passado. Por outras palavras, se forem mantidos vivos, estes violinos podem ser eternos, tal como sugere o conhecido slogan dos relógios Patek Philippe. |
Já aqueles que em algum momento foram descurados ou sofreram um azar, passam à condição de mausoléu daquilo que foram outrora. Um simples corpo de madeira que em tempos serviu para fazer música e vibrar em todas as suas fibras. Em alguns casos é possível trazer estes instrumentos de volta à vida, desempenando o seu corpo de velha madeira torneada, mas existem exemplos de intervenções infelizes em que a utilização danificou estes instrumentos para sempre, deixando-os pior do que estavam. |
Esta bifurcação na vida dos violinos é uma metáfora que é perfeitamente ilustrada por uma famosa frase de Gustav Mahler (de quem falei a semana passada), que diz que “a tradição é manter a chama viva, não cuidar das cinzas”. |
Para os violinos, para a música e para tudo na vida, esta frase não só é verdadeira como é indispensável. |
O violino que eu ouvi de perto na semana passada é o exemplo de um instrumento que tem sido mantido vivo, com o maior respeito e dedicação, é certo, mas não deixando que isso impeça o cumprimento da sua função. No fim de contas, aquele violino centenário foi feito para tocar e é ao ser tocado que se mantém vivo. |
A alcunha deste violino é Edler Voicu, porque um dos seus donos no passado foi o coleccionador de violinos Charles Edler, e mais tarde o virtuoso romeno Ion Voicu, para quem o Ministério da Cultura Romeno adquiriu o instrumento em 1956. Desde 2003, o violino encontra-se, em regime de empréstimo, nas mãos de Alexandru Tomescu. No fundo, o solista tem o privilégio de tocar num instrumento sem preço, mas tem também a incumbência de cuidar dele e não deixar que a chama se apague. Foi por isso que, com enorme surpresa, o vi chegar ao primeiro ensaio ainda de capacete na cabeça, enquanto tirava as luvas de ciclista. Só de imaginar os perigos de circular de bicicleta entre o trânsito de Bucareste com uma carga daquelas às costas! |
No meu dia-a-dia penso algumas vezes na frase de Mahler, sobretudo quando me deparo com formas de resistência à evolução sobre as formas como criamos, tocamos e ouvimos música. A música clássica, em especial, tem uma porção significativa de aficionados (músicos, agentes, directores artísticos, públicos, etc…) cujo maior desejo é que nada mude. |
Quer se trate de uma idolatria do passado ou de um certo statu quo a manter, parece que estes aficionados se sentem guardiões de uma verdade preciosa, a chamada tradição. E cada esforço é feito no sentido de preservar essa tradição, como se se tratasse de salvaguardar uma receita de família ao longo dos anos. |
Qualquer arte, e a música em especial, para estar viva, não pode admitir a rotina, nem uma partitura é uma receita que se pode repetir de forma igual quantas vezes se quiser. Quem deseja que nada mude, a fim de preservar a chamada tradição, está na verdade a matar a própria tradição sem se dar conta disso. Porque se há uma verdadeira tradição na história das artes, essa tradição é a regra da evolução constante. |
Desejar ou esperar a paragem no tempo ou o regresso ao passado não é só saudosismo. É um anacronismo nocivo para a própria arte que se pretende preservar. |
Nesta história, os violinos são um excelente personagem principal, visto que a larga maioria da música que são usados para tocar foi escrita já depois de terem sido construídos. As partitas de Bach, os quartetos de Mozart, as sonatas de Beethoven, os concerto de Mendelssohn, Tchaikovsky, Sibelius. Toda essa música foi escrita depois de Stradivari ter construído os seus melhores violinos. O homem que fez estes instrumentos não podia nem sonhar que alguma vez iria existir música assim. Ele fê-los de acordo com as aspirações musicais do seu tempo. E, no entanto, aí estão eles, centenas de violinos a tocar música do futuro e a servir de veículo para a sempre renovada expressão musical ao longo dos tempos. Na verdade, é precisamente esse o segredo para a sua longevidade, o segredo para se manterem vivos através dos séculos. |
Com tudo isto em mente, deixo as seguintes sugestões: |
O nosso violoncelo Stradivari |
O instrumento está no Museu Nacional da Música, em Lisboa. Além do violoncelo, podem ver também outras raridades que, além de instrumentos que contam uma história fascinante, são também obras de arte de pleno direito. |
Os projectos do museu para os próximos anos |
Se forem hoje (22 de novembro) ao Museu Nacional da Música, poderão assistir, pelas 19h00, à apresentação ao público do projecto da instituição para os próximos anos pelo seu novo director, o musicólogo e compositor Edward Ayres d’Abreu. Uma das mais entusiasmantes novidades que se perspectivam é a muito debatida mas finalmente deliberada transferência para Mafra, o que certamente será um ponto central na apresentação de trabalhos. |
O som do violoncelo do rei |
Para não se ficarem pelas vistas do belo violoncelo Stradivari, recomendo que também o ouçam, uma vez que está gravado. O violoncelista russo Pavel Gomziakov toca-o nos dois concertos para violoncelo e orquestra de Haydn acompanhado pela Orquestra Gulbenkian, num disco lançado pela Onyx em 2016. Pode ser ouvido aqui. |
O som do violino Mlynarski |
Se ficaram com uma vontade irreprimível de ouvir o som de um violino Stradivari, também têm bom remédio: Nos dias 24 e 25 de Novembro, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, apresenta-se a solista holandesa Simone Lamsma, que toca no violino Mlynarski feito por Stradivari em 1718, que lhe é emprestado pelo seu actual dono, um mecenas que prefere permanecer anónimo. |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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