13 de Maio é dia de fé. Para quem a tem. E ela pode nascer mesmo de onde menos se espera |
Hoje, 13 de maio, celebram-se as aparições de Fátima e é um dia que se reveste de especial importância para todos os católicos do país. Não é o meu caso. Nasci sem fé. Dirão: nasceste sem fé, não. A fé é algo adquirido, por via da educação, ou perdido, muitas vezes pela mesma via. Também achava que sim e, em boa verdade, ainda acho. Mas também creio que possam existir fenómenos de fé mais ou menos inexplicados, em famílias onde ela, à partida, não existe, ou não é fomentada. Uma espécie de (usarei duas metáforas, uma para ateus, outra para crentes) erva daninha que surge no prado (ateus), ou flor que nasce no meio do entulho (crentes). |
A minha filha Madalena teve, a determinada altura, uma fé que nasceu um bocadinho de geração espontânea. Não foi bem assim, mas quase. Passo a explicar: a minha sogra é crente. Não vai à missa porque a sua vida depende inteiramente das vontades do meu sogro, e a missa não está na lista das suas vontades, mas quando se apanha numa igreja ajoelha-se, comove-se, creio que reza à noite, de quando em vez acende uma vela por alguém, ou por alguma coisa. Acredita em Deus e compreende com dificuldade quem não tem qualquer tipo de ligação com Ele. Vai daí que, sempre que apanhou os meus filhos na sua casa, para uma semana (ou mais) de férias, aproveitou para tentar lançar a semente. Por mim, nada contra. |
Como fomos tendo vários filhos, mais ou menos de seguida, fomos recebendo os relatos que eles nos faziam das férias com os avós. Os rapazes mais velhos contavam as sessões de orações noturnas, primeiro com enfado (“que seca, a avó todas as noites nos obrigava a rezar”), mais tarde com tom jocoso (“a avó lá se punha com aquelas coisas e nós só nos ríamos”). Fui tentado balizar as coisas, explicando que não se goza com a fé de ninguém, que umas pessoas acreditam e outras não, mas que isso não dá o direito a umas de achincalharem as outras. É perfeitamente possível conviver em paz, e se a avó fazia gosto naquele momento espiritual, eles podiam muito bem aproveitar para lhe fazer esse agrado. |
Quando a Madalena começou também a ter idade para lá ficar uma semana, e para entrar nas orações noturnas, o relato foi totalmente diferente. Quando chegou a casa, pediu-me para rezar com ela. Oh diabo! Ups, talvez trazer o diabo a esta prosa não seja a melhor ideia. Reformulo: Homessa! Expliquei-lhe, então, que não me importava de rezar com ela o Anjo da Guarda, como a avó fazia, mas que depois achava bem que ela conversasse com Deus sozinha, à sua maneira, na sua intimidade. |
Não foi preciso pesquisar como era a oração do Anjo da Guarda (Anjo da Guarda, minha companhia/ guarda a minha alma de noite e de dia) para cumprir o desejo da minha filha. Apesar de não ter sido batizada, de ter sempre andado num colégio laico, e de ter sido educada por uma mãe e por um pai entre o ateu e o agnóstico, também eu tive uma avó e um tio (padre) que tentaram semear a fé em mim. |
Uma dessas tentativas acabaria por se revelar extraordinariamente contraproducente. Certo dia, a minha avó paterna levou-me com ela à missa. Deviam ser umas quatro ou cinco da tarde, e eu tinha fome. Achei a cerimónia chatíssima, mas procurei entender o que diziam e fascinava-me toda a “coreografia” de gestos (há neste momento católicos a perderem os sentidos com a escolha de palavras): mãos que subiam e desciam, polegares a traçarem desenhos imaginários sobre a testa, boca e coração, pessoas que desatavam a beijar-se na face ou a dar apertos de mão, frases ditas em uníssono sem que nada o fizesse prever. Houve de imediato uma sensação de não pertença: eu não sei fazer isto, esta não é a minha turma, ninguém me ensina, e estou aqui à parte. Mal sabia eu o que ainda estava para vir. |
Quando chegou a altura de comungar, comecei a ver uma fila formar-se na nave central e o senhor prior a dar umas “bolachinhas” (a terminologia a matar-vos – eu sei que se chamam hóstias, já agora). Já referi que tinha fome. Eis senão quando, a minha avó se baixa, antes de também ela se perfilar, e segreda-me ao ouvido: “Tu não podes. Não és batizada, por isso não podes. Fica aqui que a avó já vem.” Fiquei paralisada. Como assim? Como assim, aquele adulto que presidia àquela cerimónia tinha a coragem de negar uma bolachinha a uma criança, ainda para mais na hora do lanche? Que mal tinha eu feito? |
Ora, se já antes me havia sentido de parte, nesse instante tive a certeza de que aquele “clube” não era para mim. Definitivamente, não pertencia. E mais: não sabia se queria pertencer. Demasiado exclusivo, com demasiadas exigências: coreográficas, de memorização de texto, e até de obrigatoriedade de ter cumprido um ritual que nem sequer dependia de mim. Foi deste modo que começou a minha relação com a igreja: com o pé esquerdo. |
Depois, ao longo da vida, fui tendo curiosidades, tive umas aproximações, mas a razão sobrepôs-se sempre à fé. As minhas perguntas não tinham respostas que me satisfizessem, e depressa compreendi que há coisas que não vale a pena forçar. Ou se tem, ou não se tem. E eu, não tinha. Não tenho. Não sou mais nem menos por causa disso. Ainda que já tenha sentido, por parte de alguns crentes, quase uma surpresa pelo meu estilo de vida, e pelos meus valores, não sendo eu crente. Como explicar? Para algumas pessoas, é como se os valores da família, da solidariedade, e até da bondade, fossem exclusivos de quem acredita em Deus. |
Nunca me esqueço daquela vez que fui entrevistar o professor Marcelo Rebelo de Sousa a sua casa (ainda não era o presidente Marcelo) e de, no meio da conversa, ele me ter perguntado, com aquela sua astúcia conhecida: “Não é católica, pois não?” Quando respondi que não, ele retorquiu, com imensa graça: “Que pena… uma mulher com muitos filhos, todos do mesmo pai, com bons valores, solidária… daria uma ótima católica.” No caso, a ideia era mesmo acrescentar uma ovelha ao rebanho. Mas ainda há muita gente que olha para esta ovelha tresmalhada e pensa que, sem Deus, só pode ser má rês. |
Voltando à minha filha Madalena. Começou por rezar o Anjo da Guarda, depois pediu para ser batizada (e não foi pela “bolachinha”, porque ninguém ia com ela à missa), e a seguir quis ir para a catequese. Disse-lhe que sim a tudo. Rezei com ela, batizei-a (não eu, bem entendido, o padre), inscrevi-a na catequese, fui com ela à missa. Gostei de ver aquela flor que nascia da terra seca (de fé, atenção, que somos terra muito fértil em muitos outros sentidos). Achei bonito. Poético. Achei que podia revelar qualquer coisa, quanto mais não fosse que aquela menina tinha uma vontade muito própria de olhar o mundo, e seguramente não ia ser eu a condicionar-lhe essa liberdade de olhar. |
Um dia, disse que não queria ir mais. A catequese era só miúdos insubordinados aos gritos e uma senhora sem saber o que fazer. Muito bem. Saiu. Continuou a discutir religião com os irmãos, por vezes acerrimamente, defendendo o seu lado, sozinha, intrépida. Depois, cresceu mais e deixou cair o assunto. Hoje, antes de escrever esta crónica, perguntei-lhe: “Ainda acreditas em Deus?” Respondeu um sim convicto. E é assim que estamos. |
Hoje é dia 13 de Maio e, se a Madalena (ou qualquer um dos irmãos) quisesse ir em peregrinação até Fátima, nunca lhe levantaria qualquer problema. Os meus filhos serão – já o disse, mas nunca é demais sublinhar — o que quiserem ser. Acreditarão no que quiserem acreditar. Farão com as suas vidas o que lhes der na gana (estando eu e o pai cá para ir orientando, amparando quedas, dando conselhos, claro). Com ou sem fé, mas sempre com liberdade. |
Vale a pena… |
… Ir ao cinema por 3,5€
Esta semana, entre 14 e 17 de Maio, vai poder ver filmes de Norte a Sul do país por um preço mesmo apetecível. Os bilhetes podem ser adquiridos nas bilheteiras físicas ou online, dos cinemas aderentes. É de aproveitar e pôr os filmes em dia. Ah, o prazer do escurinho do cinema! |
… Ir ao teatro Armando Cortez, em Lisboa, ver O Feiticeiro de Oz
A história conta as aventuras de Dorothy, uma menina que é levada por um furacão até uma terra desconhecida, cheia de cor, música e magia. Na sua caminhada, vai vivendo várias peripécias mas só o grande Oz a poderá devolver à terra natal. Este é um espetáculo de teatro musical, como aqueles a que o Teatro Infantil de Lisboa (TIL) já nos habituou, e é um hino à amizade e à vida vivida de coração aberto, para o novo, diferente e inesperado.
Próxima sessão: 14 maio, 15h. Até 30 de Junho. Preços entre 8,80 euros e 11,30 euros |
… Ler o livro O Segredo da Felicidade
Escrito por Luísa Ducla Soares e ilustrado por Cátia Vidinhas, é a história de um rei infeliz que chorava tanto que a rainha temia que todo o reino se afogasse nas suas lágrimas. Médicos, bruxas, muita gente tentou ajudar, mas houve um sábio que lhe ensinou, por fim, o caminho da felicidade. Um caminho que pode dar muito jeito a todos, miúdos e graúdos. É ler e aprender.
(ed. Livros Horizonte)
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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