Como educar crianças felizes num mundo tão cheio de infelicidade? |
Há dias, o meu filho mais novo perguntava-me porque é que aconteciam tantas desgraças no mundo. Em pano de fundo, as notícias na televisão mostravam pessoas soterradas a serem retiradas, umas vivas, outras não, do terrível sismo que atingiu brutalmente a Turquia e a Síria. Respondi o melhor que soube. Que há desastres naturais e outros não tão naturais assim, que umas desgraças acontecem porque a natureza tem, desde sempre, a sua forma própria de se manifestar, e que outras vezes está apenas a reagir à ação do Homem. E, por fim, que algumas misérias são mesmo provocadas pelo ser humano, que dizem ser o animal mais inteligente do mundo, mas que por vezes não parece ser mais do que obtuso. O Mateus engoliu uma golfada de ar, numa respiração profunda que tem, de vez em quando, desde a pandemia. Tenho esperado que passe. Mas o mundo não está a facilitar. |
Não é fácil criar crianças e adolescentes felizes e otimistas no mundo tal como ele está. Responder-me-ão que em todos os períodos da História houve momentos ruins – e não deixa de ser verdade – mas acho que os últimos anos têm sido particularmente ricos em episódios potencialmente assustadores e – temo – moldadores de uma certa negatividade, que não era bem o que tinha previsto para os meus filhos. |
Pegando no exemplo do Mateus, ele tinha 6 anos quando ficou fechado em casa pela primeira vez. Sempre fui muito tranquila em relação à Covid, nunca entrei em histeria, pulverizando sacos do supermercado e legumes com álcool gel, mudando de passeio quando me cruzava com alguém ao passear o cão. Calma, também nunca fui negligente ou negacionista. Só procurei levar a coisa com alguma leveza, até para não provocar medo nos miúdos. Ainda assim, o Mateus começou a respirar de forma profunda, como se lhe faltasse o ar. Percebi que o facto de estar fechado, as notícias de caos nas urgências, e mortos e ventilados, e os boletins diários, e os aplausos às janelas, e o “vai ficar tudo bem” estava a mexer com ele, por mais que até tivéssemos conseguido ser felizes na nossa bolha, nesse primeiro confinamento (felizes, dentro do que é possível quando se está a viver uma pandemia, como é óbvio). |
A seguir a esse primeiro confinamento, o Mateus teve mais oito. Oito! O geral, que houve no inverno seguinte, e depois mais seis por ocasião de contágios próximos: pai e mãe, irmãos à vez, colegas da escola. Sempre que já estava a ganhar ritmo, voltava para casa. Os especialistas sublinham a plasticidade das crianças, a forma notável como se adaptam a todo o tipo de mudanças nas suas vidas, e é verdade. Mas não é menos verdade que o Mateus (e, suponho, muitos como ele) revela um atraso enorme quando comparo com os irmãos com a mesma idade. Não tem ritmo, não tem consistência, está perro. E continua a perguntar, de quando em vez, se pode não ir à escola, como se a escola fosse uma intermitência (as greves dos professores, cuja luta respeito, também não ajudam nada). |
Mas a negatividade não se ficou pela pandemia. Quando a vacinação se revelou eficaz e saímos das nossas tocas e os miúdos puderam por fim ver a cara de professores e auxiliares e brincar fora do seu quadrado, veio a guerra na Ucrânia. Alguns poderão dizer: “oh, por amor de Deus! Sempre houve guerras no mundo e a Ucrânia fica longe! Os nossos miúdos não se deixam afetar pelo tema.” Não sei os vossos, mas os meus foram bastante impactados. Não sei se por terem uns pais malucos que se meteram ambos no carro e fizeram mais de três mil quilómetros para lá e outros tantos para cá, no dia 1 de Março de 2022, para levar mantimentos e trazer cidadãos ucranianos em fuga. Ou por termos acompanhado as nossas amigas ucranianas de perto, a arranjar casa, emprego, etc. Ou por vermos nas notícias a brutalidade de uma guerra sem sentido. Não é que as outras guerras façam qualquer sentido (lembro-me sempre da canção War, de Bruce Springsteen), mas esta é aqui mesmo na Europa, com os países (como o nosso) a envolverem-se, apoiando um dos lados e condenando o outro. |
Depois de dois anos de pandemia, os nossos miúdos viram uma guerra rebentar na Europa, comentadores nos noticiários a falarem do risco do nuclear, do longo inverno caso tal acontecesse, dos milhões de mortos em poucas horas, em suma, do fim do mundo. Não é fácil acordar todos os dias sem saber se o tarado russo já terá carregado no botão, depois de se ter passado dois anos a acordar todos os dias sem saber se um vírus ia matar os avós, ou até os pais, ou até o mundo inteiro aos bocadinhos. |
Como se não bastasse, veio depois a crise associada à guerra, a inflação, as taxas de juro a subir, o risco de não se conseguir pagar a casa, e mais a subida da eletricidade e os preços no supermercado. E por muito que tudo isto seja menos tangível para as crianças (confesso que até para mim, que de Economia, zero), o facto é que é quase inevitável que escutem as queixas dos pais, que peçam coisas que antes recebiam e agora não e, em alguns casos mais dramáticos, que sintam mesmo um deteriorar das suas condições de vida, isto depois de – repito – viverem uma pandemia e de assistirem ao deflagrar e desenrolar de uma guerra de que se fala todos os dias, sempre com o reforço de que poderá ser o princípio do fim. |
Como se o embrulho não estivesse já espetacular, há cinco dias acordámos com a notícia devastadora de um sismo esmagador que assolou a Turquia e a Síria. As imagens, repetidas a toda a hora nas mais variadas plataformas, exibem corpos debaixo de escombros, pessoas a serem resgatadas no meio do mais retorcido entulho, prédios desfeitos no chão como castelos de cartas, histórias pungentes de quem perdeu tudo, olhares perdidos, milhões de sem abrigo a enfrentarem um rigoroso inverno. Ao mesmo tempo, comentadores e estudiosos alvitram cenários para Lisboa, o presidente da câmara diz que estamos preparadíssimos, a proteção civil diz que não é verdade, e os miúdos começam a perguntar-se (e a perguntar-nos): “e se acontece aqui?” O Mateus já perguntou para onde vamos, o que fazemos, e se ficamos esmagados, e se não estamos juntos, e os cães, e os avós? |
Por mais que se tente, é quase impossível que as crianças não apanhem qualquer coisa, se não mesmo tudo. Eu não sou muito apologista de esconder a realidade, porque ela existe, e desde que explicada de um modo que eles entendam, acho sempre melhor do que fingir que nada se passou. O pior é mesmo o excesso. E o excesso é diário. E tem sido tudo muito negro, nos últimos tempos. |
Claro que escrevo sobre o impacto de tudo isto nos nossos filhos, aqui neste canto (para já) tranquilo da Europa, e parece-me ridículo quando vejo nas notícias crianças a terem aulas em abrigos, em Kramatorsk, enquanto chovem misseis à superfície. Assim como me parece tolo falar em “crescer com uma negatividade permanente” quando vejo as imagens de crianças a serem puxadas do interior de toneladas de betão e aço, ao mesmo tempo que ouço a jornalista dizer que aquela criança sobreviveu protegida pelo corpo da mãe, que acabou por não resistir. Parece patético falar dos eventuais danos para as nossas crianças, provocados por todas as calamidades recentes, quando há quem as esteja a viver in loco, física e emocionalmente. |
Mas a verdade é que não é sequer comparável. Ali falamos de danos possivelmente irreparáveis, de uma brutalidade severa, que espero nunca experienciemos. Aqui poderemos assistir a outro tipo de malefícios, muito mais suaves, é certo, mas ainda assim suscetíveis de dar às crianças a ideia de um mundo-precipício, onde não se sentem seguras, onde não sentem que possam crescer felizes, onde não exista futuro. |
Quando o Mateus me perguntou porque é que aconteciam tantas desgraças no mundo, senti a sua ansiedade voltar. E quando a respiração se tornou profunda, de cinco em cinco segundos, como se lhe custasse respirar. E quando disse à professora que lhe doía o coração. E quando falou na morte, repetidas vezes, nos últimos dias. “O meu maior medo é que não haja nada depois. Só escuro e silêncio e nada.” |
Vale a pena… |
Ler o livro O Abismo de Fogo – o Grande Terramoto de Lisboa
Se quiser explorar o tema dos sismos, por ser masoquista ou assim, vale a pena ler este livro do historiador Mark Molesky. Não se trata apenas de uma crónica de destruição e catástrofe. É também um emocionante drama humano com personagens inesquecíveis. Por muito que todos saibamos já de cor como foi o terramotos de 1755, ler este livro agora, depois desta catástrofe na Turquia e na Síria é para duros.
(ed. Relógio d’Água) |
Ver a peça de teatro imersivo A Morte do Corvo
Eu sei. Parece que estou a fazer de propósito: morte e corvo (símbolo de Lisboa) numa mesma frase, parece que estou de novo a puxar ao terramoto. Confesso que estou bastante perturbada com o tema, mas juro que esta peça não tem nada a ver com sismos. Trata-se de uma peça imersiva em que o espectador tem de percorrer as várias salas do antigo Hospital Militar da Estrela, agora denominado House of Neverless. É a história do encontro entre Edgar Alan Poe e Fernando Pessoa. Não há texto, ninguém fala, apostando-se numa grande componente musical e coreográfica. Com encenação de Ana Padrão e direção coreográfica de Bruno Rodrigues.
Até 31 março (quarta-feira a sábado: 21h00, Domingo; 17h)
Bilhetes entre 38 e 60 € |
Ler o livro O Lento Esquecimento de Ser
É o primeiro romance de Miguel d’Alte e se o primeiro já é assim, as expectativas ficam elevadíssimas para o segundo. Li este livro em poucos dias (e sou uma leitora lenta). É a história de Henri Bemoît, que começa por viver numa aldeia de França, desprezado pelo pai e com uma mãe alcoólica, e acaba a ir com a namorada Alice para Paris, em busca do sonho de ser escritor. Mas as coisas acabam por não lhe correr muito bem. Entrega-se ao álcool, vive mal, é rejeitado várias vezes. Torna-se amargurado, até por fim alcançar aquilo que mais queria: a fama. Só que, por vezes, aquilo que mais desejamos não é mais do que uma falácia. Henri não lida bem com a glória, com os olhares, com a exposição e torna-se cada vez mais um eremita. Percebemos que vive a fugir, quando é impossível fugirmos de nós mesmos. No final, há ali um plot twist que me fez gritar em voz alta três ou quatro “não” seguidos, porque achei que o escritor ia estragar tudo. Mas, apesar daquela reviravolta não ser o meu género, não estragou. Belo livro. Aguardo o próximo.
(Ed. Trebaruna) |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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