O Dia do Pai que sabe (e quer) sê-lo |
Celebra-se amanhã mais um Dia do Pai e é impossível não pensar nas colossais diferenças entre os pais de hoje e os pais de há 30/50 anos, já para nem irmos mais atrás no tempo. Os pais não se envolviam na gravidez, não liam livros sobre o assunto (nem havia a abundância de hoje), não andavam a comprar banheiras, intercomunicadores, esterilizadores, biberões. Os pais não davam banho aos bebés, não mudavam fraldas, por vezes nem lhes pegavam ao colo, pelo menos até terem consistência suficiente para se sentirem confortáveis com isso. |
Não cantavam canções de embalar, não acordavam à noite para dar leite ao bebé, ou simplesmente para reconfortá-lo, não usavam marsúpios na rua com os seus filhos encostados ao peito. Os pais não iam às reuniões da escola, não ajudavam nos trabalhos de casa, não cozinhavam com os miúdos (nem sem eles), não davam colo, mimo, não brincavam esparramados no chão da sala, não deixavam que as meninas (ou os meninos) os maquilhassem, não liam histórias à noite, antes de os deitar. |
Os pais não ouviam desabafos, não davam conselhos, não conversavam com as crianças. Isso era coisa para as mães. Assim como medir a febre durante a madrugada, ou serenar um pesadelo, ou fazer vapores numa crise de asma. Não. Os pais não sabiam fazer. Nem queriam. Não era o seu departamento. |
O departamento dos pais era exigir. Educar. Meter medo. “Espera até eu contar isso ao teu pai.” Os pais eram o bicho-papão das crianças. Por vezes nem precisavam gritar ou bater. Oiço muitas vezes, nas entrevistas de vida que faço a pessoas mais velhas, “bastava-lhe abrir muito os olhos para mim e eu ficava logo como um fuso”. E era isto, um pai. Pobres pais. Tanto que perderam. |
Claro que houve, felizmente, muitas e honrosas exceções. Pais que, mesmo antes de ser considerado “normal”, já brincavam com as crianças e se envolviam em todos os aspetos da sua vida. Assim como o contrário: nos dias que correm, em que é expectável que um pai seja e esteja presente, que partilhe da experiência da parentalidade na igual medida de uma mãe (apesar de ainda faltar um bom caminho nas empresas para que a igualdade se consiga), também há os que continuam simplesmente a não querer saber, a não querer estar, a não querer ser. Ou a não saber fazer diferente do que fizeram consigo. |
Enquanto pai, o meu pai falhou bastante ao longo da vida. Não cometo qualquer inconfidência ao escrevê-lo aqui. Já falámos os dois sobre isto várias vezes, obviamente, e não é tabu ou vergonha, até porque ele admite, sem pestanejar, que, durante muito tempo, esteve bastante mais ocupado em viver a sua vida do que em orientar a minha. Foi preciso crescer, amadurecer, ser mãe e, sobretudo, fazer terapia, para entender que, nessas lacunas, nem tudo foi mau. Aliás, foi absolutamente extraordinário compreender que houve até muito de bom neste pai bon vivant com pouca apetência para a paternidade. |
Como? Simples. Como contrapeso. Quando se tem uma mãe rígida, exigente, pouco paciente, totalmente focada no trabalho (só assim era possível, também, criar sozinha uma filha e ainda fazer crescer o património – foi sempre uma mulher do caraças, a senhora minha mãe), talvez tenha sido crucial assistir de perto ao extremo oposto. Um pai que não aparecia porque tinha ido para uma farra qualquer, que me levava ao fim-de-semana para as maiores estroinices que possam imaginar (muitas vezes adormeci em jantaradas de fados e no chão do bar do Sheraton, ao som de um piano, entre muitos outros sítios pouco próprios para um cotomiço de 6, 7 anos), que tanto podia estar mega bem disposto e inventar programas divertidíssimos, como podia estar de ressaca e passar o fim-de-semana que me era dedicado deitado na cama a dormir (valia-me uma madrasta que foi uma santa). |
Tinha dois pesos e duas medidas: por um lado, uma mãe com a qual sabia que podia contar (e com o que podia contar se metesse o pé na argola); por outro, um pai com quem não podia contar (mas que contava todo um mundo de aventuras que me enriquecia, de outras maneiras). |
Durante algum tempo, não percebi que cresci com o melhor de dois mundos: fui o produto da união entre uma formiga e uma cigarra. E podia ter escolhido apenas um lado, considerando-o “o certo”, o “bom”, enquanto diabolizava o outro. Durante algum tempo, talvez. Mas, depois, e sem ter consciência disso, escolhi ser uma “formigarra” ou uma “cigamiga”. |
Não foi uma estratégia pensada, infelizmente. Isso faria de mim um ser especialmente inteligente. Mas não. Para ser sincera, foi como foi. Tornei-me, talvez até geneticamente, uma mistura bem dissolvida entre as duas poções. Trabalho com afinco, herdei o rigor germânico da minha mãe, não falho prazos, acordo antes do despertador, durante anos fui incapaz de tirar uma tarde, mesmo quando já era freelancer e podia dispor do meu tempo do modo como bem entendesse. |
Mas, por outro lado, também sei ser da boa vida. Gosto de não fazer nada (e sei fazê-lo com dedicado esmero), aprecio almoços que duram até ao jantar e, com sorte, até ao pequeno-almoço do dia seguinte (a minha mãe, por exemplo, é incapaz de ficar sentada tanto tempo sem fazer algo “útil”), bebo com moderação (por vezes desmoderando-me), por vezes gasto mais do que devia, e julgo fazer uma bela gestão entre trabalho e prazer, entre ser certinha como um relógio suíço, e desvairada como um balão a que se tivesse tirado o ar. |
Curiosamente, o meu pai hoje é melhor pai do que alguma vez foi enquanto eu era criança ou adolescente. Liga todas as semanas, oferece-se para ajudar no que for preciso, almoçamos uma vez por mês, pelo menos, religiosamente. Preocupa-se com coisas minhas com as quais, por vezes, nem eu estou preocupada. É um pai tardio, mas já diz o ditado: mais vale tarde que nunca. E a verdade é que, antes de estar velho e cansado, ele quis aproveitar a vida ao máximo. E aproveitar a vida ao máximo passava pouco por aturar criancinhas. |
Claro que isto é de uma suprema injustiça para a mãe (e há tantas a ler isto e a reverem-se), que teve de ficar com a “bomboca” (um bom vocábulo para me designar), que teve de levar com tudo: o bom, o menos bom, o péssimo. Que teve de ser o polícia bom e o polícia mau (sobretudo o mau porque meteu na cabeça que, de tanto sermos parecidos, ela tinha de me domesticar a genética à lei da “bala”). E que, à conta de ser mãe solteira, acabou tão concentrada na sua missão que nunca refez a vida com outra pessoa. |
Amanhã celebra-se o Dia do Pai e adorava que todos os pais se lembrassem do privilégio que é fazer parte do crescimento de uma criança. Estar lá, com tudo o que isso implica. Limpar rabos, lágrimas, ranhos. Receber abraços, oferecer colo, dar raspanetes sem ser preciso levantar a voz ou arregalar os olhos. Ensinar, educar, brincar. Rir e chorar, perder num jogo de propósito para oferecer confiança, ganhar outras vezes para ensinar a perder. Prometer e cumprir. Conversar, mesmo sobre os temas mais difíceis (ou principalmente sobre esses). Não dormir de preocupação. Não dormir de felicidade. Dormir de mãos dadas, sem achar que isso é pieguice. Aceitar um filho tal como ele é. Aceitar quem ele é, por mais que seja diferente do pai, da mãe, da família inteira. Pedir desculpa. Agradecer. Sobretudo isso: agradecer. |
O Dia do Pai é amanhã e só lastimo que este dia exista porque, quem não tem pai, seja porque nunca o conheceu, seja porque o perdeu, vai amanhã ter aquele aperto no peito maior do que nos outros dias, em que o buraco também lá está, mas meio tapado ou talvez semiescondido. O mesmo para aqueles que gostavam muito de ser pais, mas isso ainda não aconteceu (ou já não vai acontecer). Os “Dias de” qualquer coisa são sempre tramados para quem, por uma razão ou por outra, não se enquadra, não se encaixa, não tem como celebrar. Para esses, o meu abraço. |
E para os outros… o meu abraço também. Mais um especial para o meu pai, outro para o (exemplar) pai dos meus filhos, e um para o pai dele, que criou um ser humano do caneco. E já agora (isto já parecem os Óscares) para a minha mãe, que durante muitos anos foi também o melhor pai possível. |
Vale a Pena… |
… Ler o livro O Meu Pai
O nosso pai pode não ser nada de especial. Pode não ser um super-herói, pode não ter feito nada de extraordinário, nada que o torne famoso ou reconhecido em todo o mundo, ou até mesmo no nosso bairro. O importante é o que foi para nós e o modo como, fazendo o seu melhor, podem ser os mais espetaculares aos nossos olhos. O livro é da autoria de Susan Quinn e tem ilustrações de Marina Ruiz.
(ed. Edicare) |
… Uma saída entre pai e filho(s)
Pode ser um jantar, uma ida ao cinema, uma ida à bola. Mas, por vezes, uma saída só com o pai (no caso em que os pais não estejam separados, porque nesse caso, as saídas só com um dos progenitores passam a ser comuns) pode ser o cimento que vai unindo a relação. Não é que a mãe atrapalhe, longe disso, mas acho mesmo que há tempo e lugar para o casal, para cada um dos pais estar sem mais ninguém ou com amigos, para tempo de cada um com cada um dos filhos, e, claro, tempo para a família toda, ao molho. |
… Ver o espectáculo Shrek, o Musical
Shrek é um ogre verde (quem não o conhece?) que vive feliz e só num pântano, até que o seu sossego é destruído quando várias criaturas mágicas são despejadas no seu lugar. Shrek aceita a missão de ir buscar Fiona que vive aprisionada num castelo, mas apaixona-se por ela e de solitário rezingão passa a ogre enamorado. A peça é encenada por Paulo Sousa Costa e Luís Pacheco
Amanhã, dia 19, no Coliseu do Porto Ageas, às 16h30. Bilhetes entre 15 e 25 euros |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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