Quando o desejo de ter um filho desejado não há meio de se realizar |
Há oito anos, já nós tínhamos três filhos, começámos a sentir uma enorme vontade de ter um quarto. Primeiro, começou devagarinho. Assim na base do “e se?” Mas a cada mês que passava e o “e se” não se concretizava, era como se a vontade crescesse. No meu caso, que então já tinha 40 anos, terá sido o primeiro confronto com o envelhecimento. Como tenho a sorte de ter apenas uns quatro cabelos brancos e ser favorecida ao nível do engelhamento de peles, acho que foi aí que me caiu a ficha: isto é planta que já não dá frutos, estou oficialmente fora de prazo, caramba, envelheci e nem dei por ela. |
Ainda gostava de explorar este tema numa newsletter dedicada à menopausa e a tudo o que isso representa para as mulheres (ou para algumas, pelo menos), mas para mim esta é, sem dúvida uma das principais questões que distinguem mulheres e homens. Bem sei que é redutor cingirmo-nos à parte reprodutiva para falar de uma diferença marcada e marcante, mas também diria que, no demais, serão talvez mais as coisas que nos unem do que as que nos separam. |
Já neste aspeto, não há dúvidas: um homem não tem um relógio biológico de procriação a fazer tic-tac nos seus ouvidos. Uma mulher tem. E se há as que nem sequer lhe dão ouvidos, seja por não quererem ter filhos (como é evidente, uma mulher não se esgota na sua função reprodutora, e pode mesmo abdicar dela sem que isso constitua qualquer mácula na sua feminilidade), seja porque já os tiveram em tempo útil, depois há as outras: as que não encontraram um parceiro a tempo, as que deixaram para depois e um dia descobriram que era tarde demais, as que até gostavam de repetir a experiência, mas cujo corpo responde com um silêncio ensurdecedor. |
Voltando ao início do texto, lá continuámos a tentar o quarto filho e, às tantas, era como se ele (ou ela) fosse uma peça que nos faltava. Bem sei que isto pode até soar ofensivo para quem se debate com o drama de querer ter um primeiro filho sem conseguir, nem recorrendo às mais avançadas tecnologias. Não quero comparar-me ao vosso sofrimento, que isso fique claro. A nossa família poderia perfeitamente ter ficado assim, que seríamos todos muito felizes na mesma (e infelizes, noutros dias, por todas as múltiplas razões que nos fazem ficar infelizes). Mas, é como vos digo: a cada mês que não chegava, o bebé desejado tornava-se mais presente. |
Tão presente que, um dia, decidimos consultar uma clínica de fertilidade. Fiz logo uma ecografia, perguntaram-me se estava a tomar alguma coisa para estimular a ovulação, surpreendi-me com a pergunta, não, não estava. Mas porquê? “Porque tem aqui uns folículos muito grandes”. E eu, na brincadeira, atirei um “então se calhar vamos andando para casa, não?” A médica fez um sorriso amarelo, como quem diz “claro, andam há dois anos a tentar, e agora é que era”. Mandaram-nos fazer exames, para medir parâmetros importantes nestas matérias. Saímos dali com uma batelada de prescrições debaixo do braço mas, pelo sim pelo não, passámos em casa (não sei se me faço entender). |
Umas semanas depois, voltámos lá, já com o resultado dos exames. Disseram-nos que não havia nada de errado connosco, apenas o normal: a minha idade já não era a de uma moça (como não??), e o que recomendavam era uma fertilização in vitro (FIV). Para não perdermos tempo com outras tentativas com menor sucesso. Mas avisaram: como já tinha tido três cesarianas, e estava com 40 anos, teriam de transferir apenas um embrião, o que reduziria em muito a taxa de sucesso (uma gravidez gemelar, com todo o histórico anterior, poderia ser um trinta e um). Quando falaram no preço da FIV, e na percentagem de hipóteses, foi como levar com um balde de gelo pela cabeça abaixo. |
Fomos para um café e, claro, chorei, chorei, chorei. Sou uma dramática do piorio e, por isso, sugeri ao Ricardo que procurasse uma mulher mais nova, que eu já estava gasta, e todo um chorrilho de parvoíces que, hoje, me fazem ter alguma vergonha, porém pouca, que já sei que não consigo viver de outra forma que não seja intensamente. Se é para estar feliz, é à bruta. Se é para estar triste, é para ir ao fundo do poço. |
Certo é que, passados alguns dias, a razão para aquele dramalhão exacerbado (até para os meus padrões) afigurou-se num duplo tracinho cor-de-rosa, perante a minha total incredulidade. Cheguei à cozinha com uma mão atrás das costas e outra a tapar a boca escancarada de espanto, e o Ricardo olhou-me sem entender. Até que lhe estendi o teste positivo. Foi uma festa, como se imagina, e hoje a peça que nos faltava já tem oito anos e chama-se Mateus. E é engraçado porque, depois dele, não voltámos a sentir aquela quase necessidade de ter mais um. |
E agora, passo deste relato na primeira pessoa para o tema da infertilidade propriamente dito — já expliquei que estas newsletters sobre família, não sendo eu psicóloga, psiquiatra ou pedagoga, só me fazem sentido se for, em certa medida, na “ótica do utilizador”, ou seja, partindo de um episódio pessoal, e depois extrapolando para o tema que me propus explorar. |
A infertilidade é uma dura travessia, que pouco tem que ver com o acima descrito, ainda que eu sinta que cada filho é um filho e, nessa medida, cada desejo de ter um filho tem o seu peso, e a frustração de não o ver chegar tem, também, a sua dor. Mas, repito (para que não restem dúvidas e não me trucidem, que é uma atividade que está muito em voga): uma coisa é uma mãe querer ter um quarto filho, outra coisa totalmente diferente é alguém que não é mãe e deseja muito sê-lo, ter de lutar com todas as suas forças para conseguir ter um filho nos braços. Não falo do pai, porque a minha perspetiva será sempre a de uma mãe, mas é óbvio que também o incluo nesta equação. |
Vivi de perto este desespero, não só por ter tido pessoas muito próximas que o viveram, como por reportagens que acabei por fazer sobre o tema. E tenho um respeito imenso por esta dor. Porque nela cabem muitas dores: há a dor de sentir que se falha, a dor da culpa, a dor de ter toda a gente a perguntar “então e para quando um bebé?”, a dor da espera, a dor dos exames, a dor dos tratamentos, a dor das tentativas falhadas. A dor do parceiro, a dor da família, a dor de ver todos os casais amigos conseguirem o que se queria tanto. A dor de se sentir raiva por cada novo anúncio de gravidez alheia, e a dor de se sentir má pessoa por isso. A dor de descobrir sentimentos maus que não se imaginava possuir, e a dor de lidar com essa descoberta. A dor do tempo que não para, a dor do dinheiro que se gasta recorrendo ao privado (quando se tem essa possibilidade), porque o relógio é inclemente, e cada mês que passa é um mês que se fica mais longe de conseguir atingir o sonho. |
A infertilidade é um luto repetido. É como uma morte mensal, sem que tenha de haver um aborto. Porque em cada mês há uma esperança de vida que culmina numa negação dessa vida, com tudo o que isso implica de frustração, de desânimo, e de voltar a respirar fundo para começar tudo de novo. É um combate de boxe que não termina depois do KO. Recomeça. |
Sempre que é Dia da Mãe, penso nessas mães que, antes de o serem já o são. E penso em mais essa dor: a dor de ver todos a celebrar um dia que ainda não é o seu, e que talvez nunca venha a ser. E até agora, no Natal, penso nelas que, em silêncio ou com o conhecimento da família, partilham a consoada com uma série de crianças em redor, filhos que podiam ser os seus, mas que não são. |
Uma das coisas que mais custa a quem quer muito ter um filho, pela via biológica, é ouvir o clássico: “Mas porque é que não adotam? Há tanta criança a precisar de uma família…” Lembro-me de ouvir muitas mulheres, quando fiz uma reportagem sobre Infertilidade, dizerem que era mais uma dor a somar às outras. É verdade que há muitas crianças a precisar de uma família, mas não deixa de ser por isso que a esmagadora maioria das pessoas continua a optar por ter os seus próprios filhos. |
Quando uma mulher que já é mãe biológica diz a outra, que está desesperadamente a tentar ser, uma frase como esta devia poder levar com um pano encharcado na tromba (perdoem-me a brutalidade do vocábulo). Assim mesmo, automaticamente, um pano encharcado enviado por um braço divino. |
Conselho número um para lidar com quem está em sofrimento: não dar conselhos. Um abraço, um “estou aqui”, um “nem imagino o que estás a passar, mas quero que saibas que estou sempre cá para o que precises” é mais do que suficiente. Se sentem o apelo da adoção, adotem vocês. Porque nem todas as pessoas sentem que são capazes de dar esse passo, mesmo as que não estão a conseguir ter filhos biológicos (ainda para mais um passo que, como sabemos, é um verdadeiro tormento de anos de espera e burocracias em Portugal). |
A infertilidade é uma violência e pode ser altamente destrutiva, por todas as dores atrás descritas e ainda outras que, por desconhecimento ou falta de lembrança, me tenham escapado. O que não me escapa é isto: esta é uma luta duríssima para os casais (que, muitas vezes, não resistem), para as mulheres que fazem o percurso sozinhas, e para as famílias. Que saibamos sempre estar à altura de ajudar quem passa por algo tão penoso. |
Vale a pena… |
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O Parque Eduardo VII volta a encher-se de magia e diversão (e muita gente), até dia 1 de janeiro (domingo), para acolher a sétima edição desta feira de natal. O evento regressa com as suas principais atrações, como a roda gigante, a pista de patins ecológica e a Aldeia do Pai Natal. Nas diversas barraquinhas do mercado podem encontrar artesanato, produtos regionais, doçaria, além de muitos sítios onde comer (food trucks) nas laterais do recinto. |
Ler o Livro Mãe, Doce Mar, de João Pinto Coelho |
A história de uma família que não consegue fugir ao seu destino. Depois de passar a infância num orfanato, Noah conhece finalmente Patience, a mãe, aos doze anos. Apesar de ela fazer tudo para o compensar, nunca se refere ao motivo do abandono. E, por isso, há um caminho de brasas que teima em separá-los. É o encontro com um jesuíta excêntrico, Frank O’Leary, que lhe conta alguns episódios da sua vida, a primeira, que vai dar a Noah algum amparo. Mas quando a mãe finalmente desabafa com o filho sobre a solidão num colégio religioso, há uma peça que se encaixa. Há tragédia, mentiras, segredos e revelações neste novo livro de João Pinto Coelho.
(ed. D Quixote) |
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Há quem sinta que não há Natal sem circo. Até 8 de Janeiro, o circo de Natal Porto Ageas volta a reinventar-se com artistas e música tocada ao vivo, para mostrar, diante dos nossos olhos, o que as artes circenses têm de mais fantástico. Este circo tem direção musical do compositor Ramón Galarza, direção artística do clown Rui Paixão, a direção de ilusionismo do mágico Mário Daniel, e um elenco de talentosos artistas circenses vindos de vários pontos do mundo. Uma das coisas que mais me impressionou foi o facto de haver uma Sala de Conforto — um espaço de tranquilidade para espetadores de todas as idades (e acompanhante) que estejam a sentir ansiedade ou necessitem de um momento de calma. Por um lado, é absolutamente fabuloso haver este tipo de preocupação, por outro… estamos todos mesmo muito marados, não estamos? |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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