Como sobreviver a um esquecimento fatal?
Foi notícia esta semana. Um pai saiu para trabalhar e esqueceu a filha de dez meses, que dormia, na cadeirinha do banco de trás. O homem, um professor universitário, deu conta do horror quando chegou ao carro e viu a filha no lugar onde a tinha deixado, inconsciente. O carro foi arrombado, equipas médicas tentaram reanimar a bebé, mas o óbito foi declarado no local. |
Sempre que me deparo com uma notícia destas, penso: podia ter sido eu. E podia. Podia ter sido eu ou qualquer pessoa, e quem diga o contrário sofre de um problema sério de falta de empatia, falta de sentido crítico, e capacidade de entender que, para podermos julgar alguém a quem acontece uma fatalidade destas, teríamos de ter os sapatos daquela pessoa calçados. Isto é: teríamos de estar a passar e a sentir e a viver exatamente tudo aquilo que aquela pessoa estava, nos últimos tempos da sua vida, a passar e a sentir e a viver. |
A vida, por vezes, engole-nos. Temos tantos afazeres que nos transformamos em autómatos. Por vezes, agimos em piloto-automático, e se houver uma tarefa que saia do normal do nosso quotidiano, simplesmente pode ficar para trás. Mesmo que seja um filho, que é, em princípio, uma das pessoas mais importantes da nossa vida. |
Não sei (nem me interessa saber) se aquele pai costumava levar a filha à creche, que ficava no campus onde ele dava aulas. Se calhar era a mãe que a costumava levar e, por isso, o cérebro daquele homem simplesmente não registou, no meio da vida corrida que todos acabamos por viver, aquela tarefa não usual. Ou então costumava levá-la, mas naquela manhã, por estar a pensar em algum problema da sua vida, por estar tão embrenhado na resolução e na gestão do seu dia, até pode ter achado que já a tinha levado, justamente por o ter feito no dia anterior, e no outro, e no outro, e no outro. Os nossos dias, por vezes, de tão repetidos, parecem ser sempre o mesmo dia, em loop. A segunda-feira é igual à terça, que é igual à quarta, que é igual à quinta, que é igual à sexta. Podemos esquecer que fizemos algo trivial porque achamos que hoje foi ontem, ou podemos esquecer de fazer algo de completamente diferente, porque não estava na nossa programação mental e maquinal. |
Evitei ler os comentários às notícias sobre este caso, porque sempre que os leio sinto que o pior de mim vem ao de cima. Li um, apenas, que dizia qualquer coisa como “prisão era pouco para esse assassino” e pensei: havias de dizer isso à minha frente e talvez não me conseguisse conter. Não sou pela violência, que fique claro (até porque não tenho grande força de braços), mas há pessoas que me tiram mesmo do sério. |
Eu podia ser este pai. Mas completamente. Eu faço mil tarefas, tenho quatro filhos, dois cães. Acresce que sou muito distraída e, por saber que tenho mil tarefas e que sou despistada, dou por mim a repetir, em voz alta, onde deixei o filho A, o filho B, se já passeei os cães, se já fiz tudo o que era suposto. Falo sozinha, como os “malucos”. Porque sei que, entre tanto que tenho em mãos, alguma coisa pode ficar para trás. Mesmo que seja uma das pessoas mais importantes da minha vida. |
Um dia, quando a Madalena nasceu, deixei-a dentro do seu carrinho, num corredor da Decathlon. Estava com o meu marido, com os meus dois filhos, e aquela bebé era ainda uma novidade na nossa rotina. Como estava a empurrar o carrinho da superfície comercial, o meu cérebro assumiu que estava tudo certo. Dois filhos, um marido, um carrinho: certo. Quando cheguei à caixa, para pagar, o meu marido deu conta da falta: “A Madalena?” Morri. Foram segundos mas morri nesses segundos. Fui a correr, gritei para que olhasse para a porta para ver se ninguém a levava, e lá fui dar com ela a dormir no seu carrinho. Senti-me péssima. Uma desgraça de mãe. Que mãe se esquece de um filho no corredor de uma loja? Eu pergunto e respondo: qualquer mãe. Qualquer mãe cansada, com privação de sono, a lidar com um novo elemento na sua rotina, a tentar encaixar mais uma peça no puzzle. E quem diz qualquer mãe diz qualquer pai. E há neurologistas que explicam o processo, como se pode ler neste artigo do USA Today. |
Esta bebé, que agora morreu, chamava-se Madalena, como a minha. E eu lembrei-me logo desta história. E de como, em vez de a ter esquecido num corredor arejado, a podia ter esquecido no calor de um carro fechado. Aquele pai, que esta semana viu a sua vida acabar, pelo menos do modo como a conhecia, podia ser eu. |
Esta não é a primeira vez que um pai ou mãe esquece um filho dentro de um carro, com um trágico desfecho. A última vez que é conhecida, em maio de 2021, uma mãe deixou a filha no banco de trás, na Avenida Miguel Bombarda, enquanto foi levar os outros dois filhos à escola. Depois, seguiu à sua vida. Só ao final do dia, quando pediu à empregada doméstica para ir buscar a menina à escola, é que se deu conta do sucedido. |
Dessa vez, fiquei a bater mal durante muito tempo. Só conseguia pensar naquela mulher. Todos os dias, o dia inteiro. Só conseguia pensar na culpa, só conseguia pensar em como conseguiria olhar para o marido, para os outros filhos, para o resto da família, para os amigos. Não dormia bem, sentia aquela dor como se fosse minha (obviamente, com as incomparáveis distâncias — uma coisa é imaginarmos a dor dos outros, outra totalmente diferente é vivermos essa mesma dor que, no caso, é inimaginável). |
E a razão pela qual aquela mulher não me saía da cabeça era só esta: ela podia ser eu. Como este pai podia ser eu. Como da próxima vez que acontecer, porque infelizmente há-de acontecer mais vezes, num mundo carregado de burnouts, e ansiedades, e pressão, voltarei a sentir que podia ser eu. Até o Waze, o conhecido GPS, tem, desde 2016, um aviso, quando se chega ao destino, para que não nos esqueçamos de crianças dentro do carro, tal é o ponto a que chegámos. Tal é o estado em que andamos. |
Sobreviver a isto, de matar involuntariamente um filho, por esquecimento, há-de ser o pior sofrimento que um ser humano terá de passar. Só comparável – creio – a ter um filho que desaparece, sem deixar rasto. Num caso porque a culpa é demolidora, no outro porque a incerteza é cortante. |
Espero que este pai consiga sobreviver a esta catástrofe, espero que aquela mãe tenha conseguido existir depois do que lhe aconteceu. Espero que seja possível, de alguma maneira, encontrarem apaziguamento para a sua tremenda fatalidade. Que podia ser a de qualquer um de nós. |
Vale a Pena… |
… Visitar a Cidade do Zero, no CCB, em Lisboa
Pode reparar eletrodomésticos, pedir para reinventar peças antigas noutras peças, trocar livros ou plantas, ouvir palestras sobre sustentabilidade, seja ela financeira ou ambiental. Pode subscrever um cabaz de alimentos para ser entregue semanalmente em casa, pode aprender a fazer uma horta de permacultura, a cozinhar, a reaproveitar mobiliário antigo, a fazer compostagem.
Catarina Barreiros é a mentora desta Cidade do Zero, que ocupa 3500 metros quadrados e tem entrada gratuita. Nesta cidade, além dos workshops e palestras, há lojas e restauração. Mas tudo tem o objetivo de mostrar que é possível viver num mundo mais sustentável e circular, e com menor impacto ambiental.
Sábado e domingo (16 e 17 de setembro), CCB, das 10h00 às 22h00 |
… Não fugir do Lobo Mau, do MOTELX, no Cinema São Jorge, em Lisboa
O Motelx é um festival internacional de cinema de terror de Lisboa e, dentro dele, há a secção menos assustadora, dedicada às crianças, e juntando o universo infantil com o universo do terror. Além dos filmes, há também experiências educativas que estimulam a aproximação às artes. Uma delas é um peddy-papper que transforma o Cinema São Jorge numa verdadeira casa assombrada. Para descobrir as pistas e passar as etapas do jogo, os pequenos aventureiros têm de desbravar um percurso repleto de objetos, sons estranhos, fantasmas (pouco) assustadores dos bastidores secretos do cinema mais prestigiado de Lisboa. Esta atividade em particular acontece no domingo, 17 de setembro, às 10h30, e custa três euros por participante. Mas no sábado também há programação que nunca mais acaba.
Cinema São Jorge, Lisboa |
… Assistir à peça Atlas do Labirinto Humano, no Palácio do Sobralinho, em Vila Franca de Xira
A Companhia de Teatro Inestética estreou no dia 14 de setembro o seu novo espetáculo, uma peça escrita por Ricardo Cabaça e encenada por Alexandre Lyra Leite, que promete levar o público numa viagem pela complexidade da mente humana. A peça estará em cartaz no Palácio do Sobralinho de 14 de Setembro a 1 de Outubro.
Guiados por uma estranha mulher, os espectadores são conduzidos através das histórias de pacientes revelando as palavras secretas que permanecem após o encerramento de um manicómio. A linha que separa o mundo exterior do interior é ténue, e uma vez lá dentro a experiência promete ser inesquecível.
A peça é inspirada no livro Coisas de Loucos: o que Eles Deixaram no Manicómio, escrito por Catarina Gomes. O livro teve origem na descoberta acidental de uma caixa de objetos pertencentes a antigos pacientes do primeiro hospital psiquiátrico português, o Hospital Miguel Bombarda.
O evento é organizado pela Inestética em parceria institucional com o projeto Manicómio e inclui conversas informais com os autores que exploraram a intersecção da arte e da loucura nas suas criações artísticas.
Palácio do Sobralinho (Vila Franca de Xira), de quinta a sábado às 21h30 e domingos às 20h30. Bilhetes entre 7,5 euros e dez euros |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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