Viajar: do melhor que podemos dar a um filho |
Acabámos agora mesmo de sair do Her Majesty’s Theatre, em Londres, onde levámos os nossos quatro filhos a ver (eles pela primeira vez, nós pela terceira) o The Phantom of The Opera. O musical, de Andrew Lloyd Webber, pode ser (e é) uma pirosice sem fim para eruditos e puristas, possivelmente considerado uma banhada (musicalmente falando), mas como não me enquadro em nenhuma das categorias, nem de erudita, nem de purista, estou à vontade para dizer que não só gosto, como choro numa série de cenas, e só não soluço alto porque o pudor (e o respeito pelos artistas) me impede. |
Vem isto a propósito de estarmos, em família, em Londres. O meu marido fez 50 anos há dois dias e, quando lhe falei em fazer uma grande festa, para celebrar o acontecimento, respondeu categoricamente: “Muito mais do que uma festa, o que eu quero é ir contigo e com os miúdos numa viagem qualquer.” Já tínhamos vindo com eles a Londres, quando eram mais pequenos, e adoraríamos levá-los mais longe, mas o tempo era curto, eles estão em aulas, e Londres é sempre uma boa opção. |
Há poucas coisas que nos deem mais prazer do que viajar a seis. A dois também é maravilhoso, mas oferecer-lhes mundo foi a principal razão pela qual optámos por não os pôr num colégio e sim na escola pública (porque se tivéssemos de pagar propinas de quatro, não iríamos mais longe que Gulpilhares). |
Poder levar os nossos filhos a conhecer outros países, outras culturas, outras gastronomias, outras formas de vida, é aquilo que sentimos ser o melhor de todos os presentes que lhes podemos dar, e quem nos dera podermos dar ainda mais do que lhes damos. Em cada viagem que fazemos juntos, sentimos que eles crescem, que ganham amplitude de olhar, que aumentam horizontes, que compreendem de uma forma vívida a esmagadora dimensão do mundo e das vidas tão diversas que ele contém. |
Ao mesmo tempo que as viagens os fazem crescer, fazem-nos também diminuir, no sentido da arrogância do “eu”. Perante a imensidão do que vão vendo, o “eu” torna-se um ponto ínfimo no universo, e isso traz consigo (ou pelo menos assim espero) a humildade, o respeito pelo outro (odeio de morte a palavra “tolerância”, que presume, quanto a mim, uma superioridade daquele que “tolera”), a empatia e o sentido de pertença a um todo, muito maior do que cada um de nós. |
Já fizemos muitas viagens, mas há um momento, de uma delas, que nunca esquecerei: quando os irmãos mais velhos chegaram a Times Square, em Nova Iorque. Eu levava a máquina fotográfica em riste, à espera da reação deles, e consegui captá-la, para todo o sempre: aquelas duas caras de espanto, uma a olhar para a esquerda, a outra para a direita, os olhos esbugalhados, a boca aberta, e a tal sensação de pequenez estampada em ambos os rostos. Mesmo que a fotografia não me tivesse saído tão bem, jamais esqueceria aquelas expressões. Mas, claro, com a imagem, fica mais fácil auxiliar a memória. |
Depois de todas as viagens, voltamos sempre muito mais próximos, cúmplices, companheiros. Às vezes partimos numa fase em que até andamos meio de candeias às avessas, por culpa daquelas coisas típicas entre pais e filhos (resultados escolares que não foram satisfatórios, respostas tortas que magoaram, saídas à noite com horários de regresso não cumpridos), e a viagem amacia todas as crispações e junta o que o quotidiano havia teimado em separar. Conversamos muito mais, rimos muito mais, aprendemos e descobrimos juntos, perdemo-nos e encontramo-nos, vivemos peripécias, sustos, alegrias. |
Voltamos invariavelmente cheios de novas piadas privadas, relativas a algo que se passou enquanto estivemos juntos — daquelas piadas em que, por vezes, basta uma palavra para nos desatarmos a rir, sem que mais ninguém entenda. E isso… isso é ouro. |
E não é preciso sair do país para esta magia entre pais e filhos se dar (apesar de viajar para fora ser mais potenciador de uma série de aventuras, pelo simples motivo de ser sempre uma saída da tão falada “zona de conforto” – temos de falar outra língua, temos de entender novos costumes, por vezes temos de saber o câmbio da moeda, etc). Uma vez fomos para o Gerês todos juntos, dormimos numas cabanas de madeira, andámos à chuva pelo meio de um rio em que tínhamos de saber em que pedras colocar os pés, e ainda hoje eles falam nisso (até o Mateus que teria uns 3 ou 4 anos). |
Se me saísse o Euromilhões, uma das primeiras coisas que fazia era pegar na minha malta e ir viajar com eles pelo mundo. Adorava tirar um mês de férias com todos e irmos à descoberta de tantos lugares: Tailândia, Vietname, Laos, Cambodja, Índia, Zanzibar, Sri Lanka, Indonésia, Brasil, Chile, Peru, Argentina, Estados Unidos de uma ponta à outra, Moçambique, África do Sul… tanto mundo, tanta experiência inesquecível à espera de ser vivida. |
Li há dias uma história trágica e linda, ao mesmo tempo: a de um casal que está a dar a volta ao mundo com os quatro filhos antes de três deles cegarem. Isso mesmo: três dos quatro filhos foram diagnosticados com retinite pigmentosa, uma doença genética rara que causa perda da visão. O objetivo é dar-lhes memórias visuais e, claro, também mundo e proximidade e tudo aquilo a que me referia no início deste texto. Dentro da absoluta tristeza que é ter três filhos que vão irremediavelmente cegar, não deixa de ser belo ter pais que podem encetar uma empreitada destas e compreendem a importância que uma viagem à volta do mundo pode ter na formação de crianças que se verão privadas do mais importante dos cinco sentidos. |
É como vos digo: pudéssemos nós e viajaríamos muito mais com os nossos quatro filhos. Desta vez tenho sentido que esta pode ser uma das últimas viagens todos juntos, e há uma certa melancolia que se apodera de mim. É que o Manel já tem 21 anos e uma agenda muito preenchida (como é costume aos 21 anos). Só para dar um exemplo, nesta viagem que estamos a fazer para celebrar os 50 anos do pai, o regresso estava previsto (e pago) para domingo ao final do dia, mas ele, por ter um compromisso do partido político de que é militante, informou-nos de que teria de partir mais cedo, no sábado à hora do almoço. Pagou o seu voo (uma vez que o dele já tinha sido pago, e era para domingo), e lá vai ele, um dia antes de nós, apesar de saber que o pai ficou tristíssimo com o regresso antecipado (mas orgulhoso, claro, pelo sentido de compromisso e cumprimento do dever). |
Ora, desta vez foi o partido, mas em breve, será o Erasmus, os exames, a namorada, enfim, a vida que o vai “roubar” de nós. E, a seguir a ele, ao outro, que já tem 18. E depois, paulatinamente, aos restantes. É normal que assim seja, tal como foi connosco. Estou a preparar-me mentalmente para isso. Mas custa. Porque somos mesmo uma espécie de hidra, em que todas as cabeças contam, e funciona tão melhor quantas mais estiverem presentes. |
Pensar que um dia não seremos mais os seis a rir até doer a barriga, a fazer malabarismos no metro, a fazer “troca-pés” uns aos outros no meio da rua, a deixarmo-nos deslumbrar por monumentos, a empanturrar-nos com iguarias exóticas, a queixarmo-nos de dores nas pernas depois de vinte quilómetros palmilhados… pensar no fim das nossas viagens juntos deixa-me um buraco dentro do peito. Resta-me o consolo de saber que o peito deles segue cheio, do tanto que conseguimos dar-lhes (apesar de não ser tanto quanto gostaríamos). Que possam fazer eles, depois, as suas próprias viagens, a solo, a dois, a quatro, a seis, conforme for a família que escolham ter. Nós, os pais, faremos de tudo para continuar a dois pelo mundo fora, quando todos os nossos pássaros tiverem voado do ninho. Porque ir, mais até do que rir, é mesmo o melhor remédio. |
Vale a Pena… |
… viajar, sempre
Se leram o texto e ficaram com vontade de ir a Londres e ver o The Phantom of The Opera, comprem bilhetes com antecedência. Percebam antes de são do tipo intelectual, que pode achar o espetáculo uma xaropada. Não me apetecia nada ter-vos à perna por causa disso. Eu adoro, e comovo-me sempre, porque sou uma sentimental, e porque sempre que há aqueles momentos de ímpeto vocal aquilo mexe comigo de uma maneira que nem sei explicar. |
… ver o musical Cats
Se Londres estiver demasiado fora de mão neste momento mas os musicais de Andrew Lloyd Webber forem do vosso agrado, podem sempre ir ao Super Bock Arena – Pavilhão Rosa Mota, no Porto, para ver o famoso Cats. O musical estreou a 11 de Maio de 1981 no New London Theatre, onde esteve em cena 21 anos. Depois, na Broadway, em Nova Iorque, o sucesso repetiu-se. Cats é sobre a vida de um grupo de gatos, com destaque para o regresso de Grizabella, a gata que abandonou a família para conhecer o mundo (lá está, viajar, isto está tudo ligado) mas cujas saudades trazem de volta.
Dia 25, sábado, às 16h00 e 21h00.
Dia 26, domingo, às 11h00 e 16h00.
Bilhetes entre 30 e 60 euros |
Ler o livro Como Educar Crianças Desafiantes
Escrito pela psicóloga clínica Laura Sanches, é um livro que era bem capaz de me ter dado muito jeito para aprender a lidar com um dos meus filhos, que sempre foi isto mesmo: desafiante. A autora chama-lhes crianças “alfa”. Eu não sei se são alfa ou beta, mas sei que são de uma gama (piadinha grega) que nasceu para nos dar cabo da mona. Talvez com este livro deixem de ser um mistério para os seus desgraçados pais.
(ed. Manuscrito) |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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