No seguimento dos comentários de Mamadou Ba acerca da morte de Marcelino da Mata e do que este, na opinião do “ativista” foi ou para si representa, seguiram-se as habituais e galvanizadas emoções de trincheira, que acabaram numa petição online a pedir a extradição de Mamadou Ba, que por sua vez levou a um acesso debate na TVI24. Este debate, aparentemente, tinha como objetivo moderar o assunto em questão ou aproveitar-se de temas que exaltam as emoções e dão audiências.

No debate mencionado, além do jovem colunista Sebastião Bugalho, tínhamos o eurodeputado Nuno Melo e uma ativista, dirigente da associação SOS Racismo, e a professora de Psicologia Joana Cabral. Entre as várias coisas que foram ditas na entrevista em questão, retive uma em particular: em resposta ao eurodeputado Nuno Melo, que disse que o racismo não era um fenómeno exclusivo de brancos, numa atitude de condescendente “pedagogia” foi mencionado pela “ativista” que se revelava oportuno aprender, que era facto científico consumado, que não existe nem é possível existir racismo de negros contra brancos, que tal apenas poderia ser considerado preconceito e que existe racismo sistémico e estrutural em Portugal, perpetrado pelas instituições e a sociedade, e que o nosso passado colonial é reflexo disso mesmo.

Um comportamento comum, que é demonstrativo se alguém está a servir como mero veículo de uma dada ideologia é o uso recorrente da mesma terminologia, dos mesmos chavões e slogans propagados ad nauseam e da sua afirmação como verdades insofismáveis sem qualquer necessidade de substanciação, tal e qual um autómato.

Não é mera coincidência, que quem advoga e defende a inquestionabilidade da narrativa teórica de “racismo sistémico e estrutural” como científica, se insira normalmente na categoria política de “intelectual” ou ativista progressista de extrema esquerda. Uma vez que a “Teoria Crítica” que estas figuras promovem (mas omitem promover, ou até nem sabem que o fazem) deriva da ideia marxista de ideologia/materialismo dialético. Segundo a noção de ideologia de Marx, a burguesia controlava a cultura porque controlava os meios de produção. Assim sendo, segundo o filósofo, as leis, a moralidade, o sistema de crença eram fruto e reflexo dos interesses da burguesia, sendo que as pessoas comuns não teriam noção do desequilíbrio das “balanças” de poder presentes na sociedade. Para Marx, apenas seria possível libertar os oprimidos logo que todos se apercebessem da alegada validade desta linha de pensamento e da necessidade de pôr em prática a luta de classes.

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Após a queda do muro de Berlim (1989) e a machadada final na descredibilização da pretensa superioridade moral, bem como da validade teórico-prática da implementação da visão comunista, o final do séc XX marcou a derrocada da União Soviética, mas não o poder de uma ideia. Os intelectuais europeus que subscreviam e promoviam esta visão do mundo, reinventaram-na, alterando os intervenientes dos jogos de poder ilustrados por Marx, passando de burguesia vs. proletariado para a mais abrangente categoria de oprimido vs. opressor. Desde então, tem vindo a ser propagado no Ocidente e aceite perentoriamente a Teoria Crítica, que serve de base para ideólogos como a professora Joana Cabral.

Uma teoria é, por definição, uma conjetura hipotética sobre uma dada realidade. Porém, as ideias veiculadas pelos demais ativistas, académicos e influencers, usualmente aceites sem o devido escrutínio ou fundamentação, são anunciadas como inquestionáveis, tal e qual dogma religioso.
O enredo narrado assume uma narrativa padronizada que segue as seguintes máximas:

  • Todas as sociedades ocidentais (especialmente as que têm passado colonial) podem ser divididas em dois grupos: as que têm poder e as que não têm;
  • As que no presente têm poder, ou que historicamente o tiveram, oprimem sempre os que no presente não o têm ou não tiveram;
  • Todas as desigualdades existentes numa sociedade são fruto de uma discriminação subjacente às estruturas sociais e às relações pessoais;
  • Qualquer instituição, relação ou sistemas de crenças definidos e inculcados na sociedade como norma são instrumento e fruto de jogos de poder;

A categoria que define quem é o opressor e o oprimido pode dividir-se em vários subgrupos dicotómicos envolvidos em dinâmicas de poder: Sexo, raça, género, religião, género, autoidentificação, nativo vs. emigrante ou, no caso que surgiu em debate pela voz da professora, colonizador vs. colonizado, branco vs. negro.

Segundo a teoria crítica, independentemente das experiências pessoais de cada um e da sua individualidade, o que define alguém é a sua categoria grupal, a sua inserção numa das categorias anteriormente mencionadas: ou oprimido ou opressor. Sendo que esta categorização num dos grupos mencionados, depende sempre da identificação de fatores intrínsecos, imutáveis de cada um dos indivíduos.

Ora, se a definição de racismo é a inferiorização e generalização de um grupo de pessoas ou indivíduo, tendo como critério fatores individuais intrínsecos, imutáveis e arbitrários, então, considerando o princípio da igualdade da dignidade humana, não se poderá assumir que a consideração generalizada de indivíduos caucasianos como historicamente e intrinsecamente racistas, privilegiados e pouco compassivos, não constituirá uma avaliação racista e, portanto, contrária à alegada causa “antirracista” pela qual os demais ativistas, académicos e demais personalidades públicas alegam combater?! Sendo a Dra. Joana Cabral professora de Psicologia estará, eventualmente, ao corrente de que tal postura é um caso manifesto de dissonância cognitiva.

Mesmo que assumíssemos a teoria crítica como válida, podemos com relativa facilidade identificar vários problemas práticos: Se um negro é o oprimido e o branco o opressor, quão oprimido ou opressor é um mestiço ou mulato?

Se, segundo a Teoria Crítica, vivemos numa sociedade patriarcal e com racismo estrutural que faz da mulher a oprimida e do homem o opressor, quem é mais oprimido? Um homem negro ou uma mulher que seja sua subordinada?

Os exemplos hipotéticos mencionados servem apenas como exercício de reflexão para mostrar ao leitor a infinitude de possibilidades, as incongruências, impraticabilidade e falibilidade de tal doutrina. Adicionalmente, uma redução estratificada da sociedade a meros grupos inseridos numa dualidade de jogos de poder revela-se extremamente perniciosa. Além de quebrar qualquer hipótese de laços sociais, por impossibilitar a ideia de cooperação e igualdade, transformaria a sociedade num projeto de engenharia social contraproducente, que nega a tradição ocidental em que assenta a igualdade perante a lei, que define que a única e mais importante de todas as minorias que deve ser considerada é o indivíduo – a singularidade de cada um e a igualdade dos indivíduos na sociedade, independentemente de quaisquer fatores intrínsecos imutáveis (sexo, credo, raça, etnia etc.).

No entanto, segundo a dialética marxista, a premissa “Todos são iguais perante a lei” seria apenas considerada verdade numa sociedade burguesa, pois parte do princípio de que todos são iguais, no sentido de que têm as mesmas oportunidades. Segundo Marx, tal não seria possível por causa da detenção da propriedade privada e dos meios de produção. Ora, a Teoria Crítica mais uma vez reaproveitou esta ideia de Marx, negando também a validade da premissa de “igualdade aos olhos da lei”, porque não se pode considerar haver oportunidades iguais quando há uma subcategoria grupal, de determinada identidade, que foi e continua a ser oprimida – a própria noção de igualdade só poderá ser atingida assim que se inverta esta perpetuação de opressão sistémica e se libertem os “oprimidos”.

Esta teoria/narrativa vem sempre encapotada de palavras benevolentes, aparentemente cheias de boas intenções: “igualdade”, “inclusão”, “diversidade” e “representatividade”; à partida, ninguém questiona tais ideais, porém, a disposição da narrativa através de tais chavões não significa, necessariamente, que se concorde com a interpretação de quem as anuncia. Esta estratégia serve apenas como meio de intimidação, demonização e afastamento de qualquer oposição, pois permite a quem se autoproclama como legítimo representante destes valores e das minorias oprimidas, que dite a agenda. A linha “lógica” dos arautos da interseccionalidade segue mais ou menos do seguinte modo:

Quem não é a favor da igualdade, inclusão e diversidade é racista, xenófobo e discriminatório,
não és a favor do que entendo por igualdade, inclusão e diversidade, logo, és
és racista, xenófobo discriminatório.”

Sendo a libertação também um bem moral inquestionável, do qual ninguém razoável poderá discordar pelas suas conotações positivas, a agenda de implementação por parte destes paladinos da moralidade envolve e justifica sempre o desmantelamento de estruturas sociais: a história e suas figuras, identidade nacional e cultural, normas de categorização biológicas (sexo/género), tudo é afinal justificado pela libertação; sendo o mesmo aplicável à noção de igualdade, mais um conceito inatacável. Também na noção do que é entendido por igualdade e como a implementar está o cerne da questão. Neste caso, segundo a Teoria Crítica, a aplicabilidade prática para desfazer desigualdades poderá justificar sacrificar critérios de seleção com base na competitividade, conhecimento e mérito, em detrimento de quotas de representatividade de minorias consideradas oprimidas (género, sexo, raciais, o que seja).

Sendo a identidade de grupo aquilo que serve de base intelectual para a Teoria Crítica, consequente ativismo e clamor por “justiça social”, é no mínimo irónico que os advogados desta teoria sejam, no mundo ocidental e na sua grande maioria, intelectuais brancos, de classe média e média alta e de esquerda.  Não obstante o seu “pecado mortal” da “branquitude” impossível de exorcizar, estes paladinos da virtude apresentam-se como iluminados benevolentes, que após se aperceberem da sua condição irremediável de opressor, se penitenciam através de uma atitude condescendente de iluminados salvadores brancos, representantes das minorias, que ditam a agenda que deve ser religiosamente seguida para resolução da libertação dos oprimidos.

As más ideias têm o hábito de se espalhar como um vírus. Este também cá chegou e desde a sua propagação, que tais ideias têm vindo a ganhar cada vez mais poder e a dar mais influência aos proponentes desta teoria – os intelectuais da academia, tornando-os numa espécie de burguesia, que usa os mesmos meios de condicionamento social da cultura, em tudo muito semelhantes ao que Marx criticou. Também estes integram grupos de trabalho do Governo para fazer as leis, também eles ditam a moralidade, a linguagem, o sistema de crenças aceitável, etc.  Seja através da supressão de liberdade de expressão através da censura, seja por via de manifestos de intimidação psicológica por delito de opinião de quem não obedece ao pensamento ortodoxo, seja a utilização do sistema educacional para propagar os seus valores e noções, ou da inserção impositiva de determinada linguagem nas instituições e redes sociais. O que estes atores querem não é igualdade, mas impor o seu próprio sectarismo de agenda, valores e crenças como universais.
Acresce que a única cura para este vírus que contamina cada vez mais cabeças, não é uma vacina e muito menos um canudo, mas antes o cepticismo e a reflexão através de pensamento epistemológico. E isso não é comercializável à grande escala.