Sendo o Porto uma cidade de tradições empreendedoras, um ecossistema reconhecido pela sua inovação profissional e empresarial, a Associação Nacional dos Profissionais Liberais (ANPL) constituída há dois anos atrás, não podia deixar de aí realizar o seu 1º Fórum Profissional.
Com este evento, realizado com o apoio e em parceria com a Câmara Municipal do Porto, pretende a ANPL prestar contas à sociedade e aos profissionais que representa, apresentar as suas atividades e projetos aos seus parceiros sociais e institucionais, bem como às instituições públicas nacionais e comunitárias e a individualidades de referência no mundo da organização e relações laborais, nacionais e internacionais.
Nesse dia 23 de setembro, comemora-se simultaneamente o Dia Mundial das Profissões Liberais.
Para tal, um conjunto de instituições e personalidades com interesse e conexão a este universo de profissões foram convidadas a participar e interagir com uma audiência que será constituída fundamentalmente por profissionais liberais, para os quais o acesso, mediante inscrição, é gratuito.
Temas como a Representatividade dos Profissionais Liberais, o Estatuto do Profissional Liberal , o Exercício das Profissões Liberais em Portugal, na Europa e no Mundo e o Futuro das Profissões Liberais, irão ser discutidos em vários painéis multidisciplinares. Uma visão sobre os Profissionais Liberais na Europa e a sua importância para a construção europeia, com a participação do European Council of Liberal Professions e da Unión Profesional de España, irá também ser análise e discussão.
Qual a origem histórica das profissões liberais? Porque se designam assim?
Segundo o Comité Económico e Social Europeu*, em termos históricos, de acordo com Cícero e Séneca, eram atividades dignas de uma pessoa livre e a aprendizagem das mesmas, era na verdade, uma necessidade para qualquer cidadão romano livre. Em tempos antigos, atividades como as de professor, advogado, mestre construtor, arquiteto, engenheiro e médico eram descritas como “artes liberales”. Assim, este termo estava fundamentado numa avaliação social, moral e legal da atividade em questão. Atividades como trabalho nos campos ou ofícios manuais, ou seja, atividades físicas em oposição ás atividades intelectuais, eram classificadas como “operae illiberales”, porque essas eram exercidas pelos não-livres (principalmente escravos). O exercício das “artes liberales” era assim um privilégio dos cidadãos “livres”.
A compreensão atual do conceito de “profissão liberal” felizmente desenvolveu-se… Até ao século XVIII, o termo “artes liberales” continuou a ser aplicado a atividades “intelectuais”. Neste ponto, o termo deixou de estar ligado ao atributo pessoal de “nascimento livre” e passou a estar ligado à atividade profissional realizada.
Sob a influência do liberalismo, uma nova consciência corporativa das profissões liberais desenvolveu-se ao longo do século do século XIX. Concomitantemente, foram estabelecidos corpos profissionais independentes, que agrupavam os interesses das respetivas profissões. Em muitos lugares, a organização das profissões liberais criou a base para as primeiras iniciativas de regulamentação profissional, nomeadamente a separação das profissões liberais da supervisão e controle estritos do Estado. De facto, muitas profissões liberais, como as jurídicas, médicas e farmacêuticas, estavam até ao início do século XIX intimamente integradas nas estruturas estatais.
Há uma tradição de autonomia, de independência, de autorregulação na organização das profissões liberais que, de forma evolutiva naturalmente nos acompanha até aos dias de hoje. Valores só possíveis de serem assegurados em sociedades livres e democráticas. Nas sociedades totalitárias não existem profissões liberais, pois são controladas pelo Estado, pelo poder político.
E hoje em dia, o que é então um profissional liberal? E uma profissão liberal?
Uma das dificuldades com que nos deparamos na União Europeia e nos Estados Unidos, é a falta de uma uniformização efetiva de conceitos e a fragmentação que decorre desta forma de trabalho, prejudicando a sua relação com os consumidores, retirando competitividade ao tecido económico-social. Existem vários conceitos e definições para descrever o que é nos tempos atuais, um profissional liberal. Vejamos algumas.
Nos EUA, o conceito adotado é de freelancer ou self- employed. Utilizar o termo profissional liberal, pode ser confundido com o conceito político norte-americano de libertário…
Na Europa do Norte, utiliza-se mais o termo self- employed, trabalhador por conta própria, secundarizando-se o caráter e a especificidade das profissões com uma marcada componente intelectual e capacidade de autorregulação. Existe, no entanto, compreensão do termo profissional liberal.
O Tribunal de Justiça Europeu, num julgamento ocorrido em 2001, refere sobre profissões liberais, “atividades que possuem um carácter intelectual marcado, exigem uma qualificação de alto nível e geralmente estão sujeitas a regulamentação profissional clara e rigorosa. No exercício de tais atividades, o elemento pessoal é de especial importância e tal exercício envolve uma grande medida de independência na realização de atividades profissionais.”
Segundo o CESE…
“Os profissionais liberais prestam serviços intelectuais com base numa qualificação ou habilitação profissional específica. Estes serviços caracterizam-se por um elemento pessoal e baseiam-se numa relação de confiança. Os profissionais liberais exercem a sua atividade mediante responsabilidade pessoal e independência profissional, estando sujeitos a uma deontologia profissional, vinculados aos interesses dos seus clientes e ao bem comum e subordinados a um sistema de organização e supervisão da profissão.”
Já a Comissão Europeia, na Diretiva sobre o reconhecimento de qualificações profissionais 2005/ 36/ CE na versão revista de 2013, refere, “ …as profissões liberais que são, nos termos da presente diretiva, as exercidas com base em qualificações profissionais específicas, a título pessoal, sob responsabilidade própria e de forma independente por profissionais que prestam serviços de carácter intelectual, no interesse dos clientes e do público em geral.”
De acordo com o Manifesto de Roma, assinado em 2017 e adotado pelo CESE,
…”as profissões liberais consistem na prestação de serviços intelectuais com base numa qualificação ou habilitação profissional especifica. Estes serviços caracterizam-se por um elemento pessoal e baseiam-se numa relação de confiança. Os profissionais liberais exercem a sua atividade mediante responsabilidade pessoal e independência profissional, estando sujeitos a uma deontologia profissional, vinculados aos interesses dos seus clientes e ao bem comum e subordinados a um sistema de organização e supervisão da profissão. Esta definição não é exaustiva, mas está aberta a novas evoluções tecnológicas e a novas profissões. O Manifesto de Roma revela que estas características são indicativas das profissões liberais, mas nem sempre têm de ser cumulativas”.
Como vemos, o conceito de profissão e profissional liberal, não está harmonizado no espaço europeu. Uma urgência que se impõe.
A descrição que adotamos na ANPL, face à indiferença histórica do Estado português relativamente ás problemáticas associadas a estas profissões e profissionais, é o de trabalhadores “detentores de qualificações de natureza intelectual, incluindo aquelas de índole artística e cultural, promovendo a sua responsabilidade, autonomia e independência no superior interesse dos consumidores e da comunidade em geral”. É uma definição focada , mas também abrangente para acomodar no seu seio, não apenas as clássicas profissões liberais, auto reguladas pelas respetivas ordens profissionais e ainda outras regulamentadas diretamente pelo Estado português ou por algumas instituições associativas privadas , mas também um conjunto de outros profissionais em diversas áreas, por exemplo Encarregados de Proteção de Dados, Analistas de Dados ,Consultores Financeiros, de Estratégia, Informáticos, Instrutores, Chefes de Cozinha, Coachers, Designers, Jornalistas, Designers, Músicos, Encenadores, Professores, Escritores, Galeristas, Tradutores Especializados, Antiquários, de entre muitas outras, muitas delas jovens profissões.
A ANPL constituiu-se para acrescentar valor, para defender e promover as profissões liberais, na fiscalidade, na proteção social, no combate ao subemprego, no apoio à paternalidade, só para dar alguns exemplos. E, last but not least, para que estes profissionais sejam convenientemente ouvidos, reconhecidos, e valorizados, pois, só desta forma ajudaremos a evitar a saída de muitos dos mais qualificados do nosso País, a proletarização destas profissões, a ansiedade financeira daí decorrente, a subalternização da sua importância por parte de um Estado anquilosado e a afetação da qualidade na prestação dos respetivos serviços ao mercado, ás empresas e aos consumidores individuais.
Queremos ser profissionais liberais assumindo os ricos do autoemprego, do empreendedorismo, da incerteza e até da autonomia dentro das organizações. Mas, para tal, temos que ser convenientemente levados em conta, com a construção de um Estatuto Legal que enquadre e confira equidade à especificidade desta forma de trabalho face às outras profissões.
O intuito da ANPL é o de interagir com os profissionais liberais, com a sociedade civil e colocar de uma forma integrada, em cima da mesa, algumas das grandes questões que serão absolutamente determinantes para que esta forma de trabalho seja encarada pelos poderes públicos, pelo poder político, reguladores e sociedade civil de forma diferente, pois de facto é diferente o exercício liberal das profissões.
Afastando corporativismos serôdios ou elitismos prosaicos, as profissões liberais querem mostrar-se suficientemente abrangentes para se assumirem com um conjunto de valores comuns que lhes são transversais, e a partir dessa matriz, identificada que está em Portugal a inaceitável realidade de profissionais liberais sem representação e defesa plena dos seus interesses nas vertentes económica, fiscal e proteção social, como aqui no Observador se tem escrito.
Comprometemo-nos com princípios e valores comuns ás nossas profissões, tais como a responsabilidade, a confiança, a confidencialidade na manutenção do sigilo profissional, a proteção dos dados dos clientes e a manifestação e exclusão de possível conflito de interesse.
Os profissionais liberais prestam serviços de forma personalizada, e assumem responsabilidade integral pelos mesmos, independentemente do vínculo profissional; comprometem-se ainda com códigos de ética e padrões de comportamento deontológico, assegurando a qualidade dos serviços prestados, boas práticas aplicáveis, honestidade e moralidade. A vertente comercial, não é, não pode ser o seu interesse primordial. Daí que se exija ás organizações onde ou para as quais prestamos serviços iguais, compromissos de ética e o cumprimento escrupuloso de códigos de conduta por parte dessas organizações.
É fundamental a autorregulação de vertentes relevantes da nossa atividade e o controlo dos nossos pares, e da sociedade em geral, embora enquadrados pela interpretação do interesse público numa perspetiva de valor social da autorregulação.
Fruto da interação direta com clientes, consumidores, cidadãos de uma forma geral, os profissionais liberais baseiam a sua reputação no seu bom nome, na flexibilidade e agilidade que muitas vezes introduzem nos serviços que prestam, de forma presencial ou remota o que lhes dá um carácter de resiliência que outros setores profissionais não revelam.
Como tal, os profissionais liberais investem na sua formação ao longo da vida, ao nível técnico e científico e na adoção de novas tecnologias aplicáveis.
Concluindo, precisamos de estudar e quantificar de forma adequada e em detalhe a realidade dos profissionais liberais em Portugal.
Esperamos que o nosso 1º Fórum sirva de inspiração para uma nova dinâmica que ajude os nossos jovens, particularmente os mais qualificados a exercerem as suas profissões de forma liberal em Portugal caso seja essa a vontade e sobretudo invertendo a tendência de crescente proletarização destes profissionais.
*European Economic and Social Committee, Ulmer, K., Moll, N., Dorando, T., et al., The state of liberal professions concerning their functions and relevance to European civil society, European Economic and Social Committee, 2014