Ando a aprender a ser divorciada e não é fácil o silêncio, a casa vazia, imagino que caio na banheira, ou escadas abaixo, encontro-me para cafés com as mulheres mais livres e, na rua, dou com as mulheres sozinhas, cada qual tem a sua singularidade, uma, de cabelo curto, fuma e fala dos colunistas deste jornal, outra vi comer caracóis e beber imperiais, usava um vestido azul sem costas, tatuagens pequeninas como aranhiços braços acima, outra, usava sabrinas, tinha longos cabelos ruivos, nunca mais me saiu da cabeça, eram sete da tarde, na esplanada, bebia vinho branco, quase uma Rita Hayworth vinda do escritório, um alto quadro de uma empresa de telecomunicações, segundo entendi, outra, escritora e sábia, bebia chá de tília e comia uma tosta de queijo, tens de arranjar um namorado, de preferência estrangeiro, outra, de bengala, então diga lá que coisas doces é que tem hoje?, escolheu uma Coca-Cola e uma bola de berlim, outra, ainda mais generosa, fala-me da maravilha meditativa do tricô, comentamos como as pessoas na cidade dão pouca confiança umas às outras e raramente abrem as casas aos amigos, conto-lhe que se agendam chamadas telefónicas, rimos, mulheres sozinhas, conheci a minha dose desses bichos, odiavam cozinhar (o frigorífico vazio: marmitas esquecidas e frutos tristes), maldiziam o trato da roupa, ou eram as mais prendadas a fazê-lo, não há duas mulheres iguais, a minha mãe, sozinha em casa numa montanha na Etiópia, a minha mãe talvez seja uma santa, coisas nas quais reparo agora, reparo nos dentes das pessoas, há dentaduras que já tiveram duas, três vidas, reparo se arranjam ou não as unhas, reparo nas cutículas das unhas das pessoas e se têm ou não olhos tristes, lembro-me de uma amiga que me costumava falar da avó e dizia ser a mulher mais alegre de sempre, isso é que eu queria, é o meu sonho de mulher, ser uma mulher que dá gargalhadas, uma mulher que alegra uma casa, que esbanja boa-disposição e que tem o dom de iluminar os dias tristes, uma mulher que ame os Domingos, mas nunca conheci uma mulher assim que fosse, ela mesma, feliz, alguém em quem essa alegria não fosse um disfarce para as suas tristezas, em toda a série de televisão há uma mulher morta, afadigam-se homens e meios para desvendar o crime, vendo bem, talvez eu só tenha conhecido uma ou duas mulheres felizes, tanto foi assim que, durante muito tempo, eu achava que gostava mais de homens do que de mulheres, que coisa disparatada, penso agora, de se pensar e de se dizer, que me envergonha, talvez fosse assim porque só os homens que conheci estavam bem na sua pele, às mulheres era mais complicado, estarem na sua pele envolvia enfrentarem mais forças contrárias, escrevo sem parágrafos, aquilo de que me apetece falar é de líquenes, do modo como os líquenes prosperam em comunhão com outras espécies, que colonizam, a sua relação simbiótica com entidades estranhas, “a intimidade entre estranhos”, como li, entre os líquenes e os seres vivos unidos aos quais florescem, queria falar disto porque quando o li me pareceu que este conceito é parecido com o meu ideal de sociedade, que os estranhos possam ser íntimos ou, pelo menos, ser curiosos em relação uns aos outros, escrevo e imagino a sociedade humana assim, imaginando, talvez por optimismo ingénuo, que podia não ser perigosa em todos os casos esta promessa de intimidade, que seria parecido com trazer alguém a nossa casa pela primeira vez, nunca saberei aquilo em que estás a pensar quando entras em minha casa, e tu também não saberás nada da minha ligeira timidez em receber-te, desculpa, mas a sala cheira um pouco a tabaco, será que as almofadas do sofá estão bem lavadas?, agora, às vezes, fico um pouco desconfiada das pessoas e, quando me abro, fico nervosa, quando passam muitas horas sem conversar com alguém, esqueço-me da minha voz, já não sei como soa, é quando me sinto só, quando me esqueço do som da minha voz, porque só se escuta quem somos com os outros, veio-me agora à cabeça o amar perdidamente da Florbela Espanca, que será que ela quis dizer ao escrever isto?, queria ser capaz disto, de um fluxo contínuo, escrever como um rio, ter a cabeça e o coração na ponta dos dedos, deixar correr este caudal, não parar senão para acender o cigarro e beber um gole de água, escrever assim, para sempre, até as unhas ficarem compridas, até o cabelo chegar aos pés, escrever como quem se encontra com a morte e ressuscita e continua, escrever com tal força que eu arrancasse da página um amigo, sim, a veleidade de imaginar que conseguiria de tanto escrever criar a pessoa que me faria companhia, escrever tanto e durante tanto tempo que também a essa pessoa crescessem duas mãos, dois olhos, duas pernas, longos cabelos, uma cabeça, uma boca, e que então, continuar a escrever fosse poder conversar com essa pessoa para sempre, amar perdidamente para mim é isso, conversar perdidamente, conversar com alguém até ao fim dos tempos, será que eu seria o líquen do meu amigo ou ele o meu líquen?, sim, escrever tanto e durante tanto tempo que dava à luz o meu amigo e ele ser o meu líquen e eu ser a planta de que ele se alimenta e ele o meu alimento, passo os olhos pelas estantes, vejo O Monte dos Vendavais, que nunca li, às vezes, sinto-me assim, no quinto piso, no cimo de um morro a falar sozinha, manual para divorciadas, como poderia começar?, divorciada cheira-me a laca, fecho os olhos e vejo a tua pele, pele de quem já viu tudo, divorciada soa-me a uma gargalhada que termina num silêncio, será da perspectiva da cama vazia?, talvez eu me devesse apenas sentir livre, anda por aí tanto defensor da liberdade a todo o custo e acima de todas as coisas talvez algum me pudesse explicar se ser livre é parecido com prescindir de parágrafos e pontos finais, ou se é, como me parece, a coisa mais difícil de todas, e que ninguém sabe ensinar, não uma decisão, nem uma escolha, mas uma coisa do domínio do que não se pode aprender, uma prática sem lição, o problema da solitária talvez seja esse, ninguém explica o que é ser livre, como se pode ser livre, em que consiste, como gozar isso, a liberdade parece menos próxima de um mandamento e mais próxima de uma projecção interior, fecho os olhos, vejo a gargalhada da amiga nova em minha casa, como mandava a cabeça para trás, como estava feliz por estarmos juntas, liberdade é talvez esquecermo-nos de almoçar porque estamos a gostar de conversar com uma pessoa pela primeira vez, escrever tanto que desenterrava da página um estranho, que depois trataria de conhecer, inventar não alguém que eu sei quem é, mas inventar alguém que desconheço completamente, alguém como a minha amiga nova, sentada diante de mim, a ensinar-me o que aprendeu sobre lãs, botões, fados, o destino, ter de esperar que o estranho aceitasse dar-se a conhecer, uma companhia como uma personagem como uma filha, alguém que, saído das minhas mãos, me fosse tão completamente outro que só nos restasse a amizade.

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