Parece que hoje em dia uma considerável porção da população do Ocidente tem vindo a aderir a extremismos (refiro-me à visão do mundo destas pessoas e não apenas ao fenómeno político). Estes são rapidamente condenados e repudiados; vistos como uma ameaça à democracia e a todas as vitórias do liberalismo (a filosofia política e não o partido), e, devo acrescentar, com razão (não quero que este artigo seja precocemente “cancelado”). No entanto, o liberalismo também trouxe consigo as sementes de futuras derrotas, nomeadamente uma que é particularmente notória na sociedade moderna: a apatia.
Esta apatia, ou indiferença, é tão perigosa como qualquer extremismo, pois é ela que permite que os últimos ganhem preponderância. Ray Bradbury, numa das histórias que compõem a sua obra The Illustrated Man, contempla o fim do mundo sob a perspectiva de um jovem casal e endereça esta problemática de uma forma directa e simples: “- We haven’t been too bad, have we? – No, nor enormously good. I suppose that’s the trouble – we haven’t been too much of anything except us, while a big part of the world was busy being lots of quite awful things.”
A apatia nasce da simultânea aderência a certas ideias e do esquecimento de outras, como duas faces da mesma moeda. Sob o olhar encorajador do liberalismo, porque encoraja a diversidade de pensamento (algo inofensivo e até muito positivo se existir uma base de referência), várias ideias foram ganhando protagonismo, tendo agora hegemonia na sociedade ocidental, ainda que de forma talvez não inteiramente consciente. Podemos agrupar as mais preponderantes em três pares, sendo que não são mutuamente exclusivas, misturando-se na maior parte das vezes: o relativismo e o niilismo – a sua ligação à apatia é clara, porque esvazia o mundo de qualquer motivação, afinal se não existe objectividade, importância ou significado, porquê fazer o que quer que seja?; o materialismo e o hedonismo, porque a redução do ser humano aos seus impulsos básicos retira-lhe o seu valor intrínseco e convida à indiferença em relação ao destino do outro; por último, o individualismo e o narcisismo, porque queimam todas as lealdades do indivíduo (até à própria família), levando ao culto do “eu” e por consequência à inferiorização dos demais. Simultaneamente, perdemos todas as referências, tomámos por garantido o nosso estado actual e esquecemo-nos de como aqui chegámos. A letargia instalou-se, então, confortavelmente. Para defender algo é necessária actividade, actividade essa que tem de ser justificada por uma razão, mas o que nos falta é precisamente essa razão.
Penso que, para a maioria da população, o dilema não se coloca exactamente nos termos acima descritos, mas que está imiscuído naquilo a que chamamos a busca da felicidade. Por outras palavras, a realidade não é avaliada sob a perspectiva da razão e da filosofia, mas somente da experiência pessoal. Por isso, o combate entre motivação e indiferença, empatia e apatia, é sobretudo avaliado segundo as suas próprias noções de felicidade (continuam a ser influenciadas pelas ideias expostas acima, mas não de uma forma necessariamente consciente). Quando a felicidade era sinónimo de uma vida virtuosa, este problema não se colocava, porque seria necessariamente aversa à apatia. Contudo, hoje a felicidade toma os contornos definidos pelas ideias acima descritas. Tem um carácter sobretudo material, quantificável, e a apatia passa a ser não só inevitável como necessária para a persecução deste objectivo. As diversas variações do ditame, “O que importa é ser feliz”, tornaram-se os gritos de guerra das massas apáticas. No entanto, esta nova versão de felicidade leva invariavelmente à miséria, do próprio e dos demais, daí também a importância da indiferença como “coping mechanism”. O erro está em colocar a felicidade como um fim quando deve ser vista como uma consequência. Colocar a felicidade como fim último da existência humana torna impossível a construção de algo duradouro e com significado, porque o mínimo obstáculo levará à rejeição do caminho escolhido. De resto, a felicidade sempre me pareceu sobrevalorizada, colocada num altar ao qual se sacrificam carreiras, relações, crenças e virtudes.
C.S. Lewis no último ensaio que publicou onde retrata as consequências da separação da ideia de felicidade da Lei Natural, intitulado We have no right to happiness, profetizou de forma perspicaz esta mesma condição: “(…) though the “right to happiness” is chiefly claimed for the sexual impulse, it seems to be impossible that the matter should stay there. The fatal principle, once allowed in that department, must sooner or later seep through our whole lives. We thus advance toward a state of society in which not only each man but every impulse in each man claims carte blanche. And then, though our technological skill may help us survive a little longer, our civilization will have died at heart, and will—one dare not even add “unfortunately”—be swept away.”
Felizmente para nós, tudo isto é corrigível recorrendo às perguntas de uma criança, começando pela mais importante de todas: o porquê? Se a busca por esta resposta for feita de forma honesta então estamos no caminho para redescobrir a humanidade, o sentido, a democracia, a virtude e, atrevo-me a dizer, a felicidade.