Ainda não passaram muitos anos, mas a vila onde cresci parece ter desaparecido. Não tenho qualquer má vontade em relação a isso. Ela tem o mesmo nome. Não acho desejável o regresso ao “como era antes”. E, nem sequer considero que esse tempo fosse particularmente virtuoso. É só um desabafo.

No caminho da antiga casa para o terreiro, a farmácia está em obras, a pensão fechou e a loja dos brinquedos já não existe, como também não existem o Sr. Gavinho, o Sr. José, ou o Morais, com as suas lojas, hoje todas transformadas em restaurantes de tapas. Na praça, só restam o Zé do Café Central e o Armando da Atenas,

– não se vêem as coisas com as mãos

como ele gritava severamente quando ousávamos tocar nos jornais, plastificados por ele manualmente, para impedir que os folheássemos antes de os comprar. Esse era, segundo ele, um vício dos espanhóis, embora fossem eles os seus melhores clientes. Ler foi sempre uma transgressão insidiosa, um desafio àquele homem que nunca sabíamos se nos repreenderia no minuto seguinte ao virar da página, um protesto contra a sua autoridade.

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Como escreve James Wood em A coisa mais próxima da Vida, livro recentemente traduzido para português, respondemos aos esoterismos dos adultos, com os nossos próprios esoterismos, às suas mentiras, com as nossas “mentiras de principiante”. E, quando o Cristianismo iliberal dos pais começou a deslegitimar os porquês do renomado crítico literário e os reconduziu à resignação como única resposta possível, Wood optou pela literatura por, ao menos aí, as mentiras serem “usadas para proteger verdades com sentido”.

Usar este livro precioso para fazer exames de consciência é ficar aquém da sua grandeza, mas é irresistível perguntar: quantas vezes não transformámos a religião, a política, a economia e a cultura num conjunto de mentiras que são usadas para proteger verdades sem sentido, e a vida não fica, então, reduzida a um esoterismo sofisticado?

A certo ponto, num dos ensaios do livro, Wood explica como o leitor assume em si “não só os misteriosos poderes do Jesus vigilante, mas também a muito humana capacidade para perdoar de Jesus”, e, umas páginas mais à frente, reflete como “a vida de uma história reside no seu excesso, no excedentário, no desenvolvimento invasivo das coisas para além da organização e da forma”. Acontece que o Cristianismo, como a vida, e todas as coisas mais próximas dela, parecem saber, quase sempre, a metade, a algo partido e dado só por um lado. Ficámos ou só pelo excesso, como se ele fosse algo exótico, ou pela presença, como se ela não pudesse ser mais que uma intromissão.

As histórias, diz James Wood, “produzem rebentos, lascas genéticas de si mesmas (…) combinações dinâmicas de excesso e desilusão”. A sua sedução parece vir, aliás, da sua capacidade de replicação, a possibilidade de “resgatar a vida das coisas da respetiva morte”, quando a opção mais frequente é afundar a vida na sua própria morte. Ao Cristianismo “carbonizado” dos pais, Wood aprendeu a antepor a vida que não começa, nem acaba “pela sua lógica interna”. À vida, feita de partidas e chegadas, e que se arrisca a ficar resumida em “meras aventuras no vazio”, a ficção mostrou ao crítico inglês que a ressurreição era uma forma de “atenção considerável ao pormenor”.

Ainda assim, como aquela vila que parece ter desaparecido, embora a continue a percorrer, essa “coisa mais próxima da vida”, seja ela o que for, não deixa de nos iludir. É o que acontece naqueles momentos infantis, quando alguém nos pergunta em qual das mãos fechadas se esconde o rebuçado, e depois de muito indecisos escolhermos um lado, num instante percebemos que o rebuçado nunca esteve ali.