Estamos todos, com razão, preocupados com uma nova crise – mais ou menos anunciada – que teve início oficial este domingo à noite em Itália: o vencedor das eleições foi o Movimento 5 Estrelas – que se apresenta como uma formação eurocética à esquerda do espectro político – logo seguido dos nacionalistas de extrema direita da Liga (antiga Liga do Norte). Itália tem agora muito que negociar no seu panorama fragmentadíssimo para poder formar governo. Mas o que nos deixa apreensivos é quando nos perguntamos – que tipo de governo? Independentemente da resposta, há duas leituras que não podemos deixar de fazer: por um lado, o primeiro e o segundo partidos mais votados das eleições são antissistema e rejeitam o projeto europeu. Por outro, as eleições italianas parecem o culminar de todos os problemas que a Europa tem enfrentado nos últimos anos. A protesto segue-se protesto (mesmo que seja em forma eleitoral), e os alvos são sempre os mesmos.
Mas precisamente porque Itália nos fez perceber que os nacionalismo e extremismos europeus vieram para ficar, talvez conviesse olhar para uma outra perturbação que se tem desenvolvido em termos mais cordiais, mas que está longe de estar resolvida: a crise da governação da Alemanha. E a razão porque é tão importante – talvez mais importante que qualquer outra – é que as suas dimensões interna e externa se reforçam. E apesar de, na perspetiva de muito estados, a Alemanha ter uma imagem de estabilidade e prosperidade, Berlim enfrenta tantos (e os mesmos) problemas que os outros países europeus.
Primeiro vieram os resultados eleitorais, chocantes, na medida em que, pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, um partido de extrema direita (a AfD) teve um resultado muito significativo. Seguiram-se as negociações entre os dois partidos mais votados – a CDU e o SPD – que puseram à vista de todos os profundos dilemas que os partidos tradicionais centristas (na Alemanha e não só) estão a enfrentar. Criar coligações na Alemanha costumava seguir um guião bem conhecido. Isso agora acabou. Ao negociar a nova GroKo (Grosse Koalition), Merkel teve conceder políticas e lugares de topo. É compreensível: esta coligação tem desgastado muitíssimo a CDU e tem sido fatal para o SPD. Emerge como um sacrifício pelo bem da nação e da Europa.
Os dois partidos do centro alemão partilham dilemas profundos – que devem ser vistas como a causa de muitos destes problemas. Por um lado, estão a pagar o preço pelas respostas à crise europeia nas suas ramificações: quer nas questões económico-financeiras (a austeridade desgastou muito o governo alemão interna e externamente), quer na crise dos refugidos (em que Merkel pagou o preço por fazer a coisa certa), quer na questão incomensurável, mas não menos importante, da perda de identidade político-partidária.
Já correram rios de tinta sobre as duas primeiras questões, por isso escolhemos aprofundar a última. E argumentamos que os partidos que nascem com identidades marcadas e as vão deixando cair ao longo do tempo têm que enfrentar dois problemas complexos: a perda do eleitorado fidelizado, que já não se identifica com a matriz da instituição, e a sua própria crise interna ideológica. E os partidos do centro – criados depois da II Guerra Mundial – têm sido o garante da estabilidade do estado alemão nos moldes democráticos que lhe conhecemos. Mas durante os últimos anos, o SPD (e também a CDU, ainda que de forma menos acentuada) parecem ter estado muito mais preocupados em fazer o que os eleitores querem do que dizer ao que vêm. O que causa um dilema faustiano – neste processo perde-se a alma. Ou, em termos políticos, mais simples: os partidos do centro foram-se descaracterizando e a GroKo foi-se tornando simultaneamente uma solução (fraquinha) de governabilidade, um sinal e acelerador do declínio dos partidos do centro e a oportunidade para os partidos extremistas se estabelecerem na política institucional. E se há alguns anos, havia quem defendesse que esta integração de partidos mais radicais poderia ser benéfica, uma vez que tendia moderar as tendências extremistas, hoje pouca gente se atreve a avançar este argumento. Já percebemos que o risco é demasiado grande.
Para tentar inverter esta tendência, os partidos da grande coligação têm-se empenhado, quase em simultâneo, na reconstrução das suas próprias narrativas fundadoras e na sucessão das suas lideranças. O processo no SPD começou em abril, na sequência do resultado eleitoral desastroso e o da CDU está a desenvolver-se em lenta cozedura.
Comecemos pelo SPD. O maior e mais antigo partido socialista democrático da Europa perdeu nos últimos anos uma parte significativa do eleitorado (desde 1998, mais de metade), como aliás tem acontecido com muitos outros partidos da esquerda europeia. Para tentar compor a situação, veio Martin Schulz, uma superestrela da Europa, mas o resultado eleitoral foi o que se sabe. Schulz – essencialmente para recuperar nas questões identitárias – começou por recusar formar governo com a CDU. Mas esta manobra deu origem a uma crise era tão extensa e de resultados tão imprevisíveis, que o SPD foi mesmo forçado a voltar atrás e ceder a formar governo. No entanto, o que pode ser visto como um governo de salvação nacional (e europeia), também revelou um dos lados mais críticos da política: a luta interna Martin Schulz e Sigmar Gabriel pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Longe de ultrapassarem o dilema faustiano, agravaram-no. Agora perfila-se uma mulher para a substituição na liderança: Andreas Nahles.
Nahles seguiu a estratégia astuta de ignorar as lutas internas. Num discurso apaixonado na Convenção do SPD, em janeiro, fez um apelo à missão nacional do partido e recuperou os mitos fundadores da social democracia alemã (na sua versão moderna, de rotura com o marxismo, que data de 1959). Mais, soube comunicar estes elementos de uma forma eficaz e convenceu muitos dos que estavam presentes que este tem de ser o ponto de partida para o diálogo com a CDU. A aceitação foi quase imediata. Afinal, Nahles sintetizou o que os congressistas consideram essencial: a reafirmação dos valores que formam a ideologia do seu partido. E também compreendeu e soube explicar que não há formação partidária que resista à ausência de identidade, em particular quando governa em modo de coligação.
Também para a CDU as questões de identidade ideológica se tornaram primordiais na sucessão de Angela Merkel – a fazer o seu último mandato. Para os democratas cristãos também parece ser essencial regressar às origens católicas do partido, que nasceu no deserto do pós-guerra. Em 1945 é precisamente essa identidade católica que permite reconstruir o centro direita, corroído pelo nacionalismo e nazismo. A herdeira escolhida por Merkel é Annegret Kramp-Karrenbauer (AKK), uma política oriunda da fronteira da Alemanha com França no Sarre, que se distingue pelo perfil católico e pró-europeu. Também ela significa o regresso à tradição da CDU, e não se inibe de falar dos órgãos de igreja e de idas à catequese.
Por causa da Europa e mesmo do passado histórico, os partidos do centro deixaram cair as afirmações de ideologia e identidade. No entanto, a identidade é a forma fundamental de colar diferentes sensibilidades dentro dos partidos. E as formações partidárias que ignoram esta ideia condenam-se. Tradicionalmente, tanto socialistas como democratas cristãos são partidos de massas, que têm de fazer compromissos, quer no seu seio (abarcando diferentes sensibilidades), quer um com o outro. Mas isso não só não impede a permanência da sua identidade ideológica como, pelo contrário, deveria reforça-la.
Outro fator fundamental que ditou a erosão dos partidos de centro e que “as senhoras que se seguem” parecem querer colmatar é uma distância cada vez maior entre os partidos de centro e os eleitores. E ponte entre eleitos e eleitores faz-se precisamente neste duplo movimento: uma cristalização identitária que una o partido (que se inicia nos momentos fundadores e vai sendo como que atualizada nas conjunturas críticas) e na capacidade de comunicação das identidades e das mensagens políticas como um todo indivisível. E quando é necessário formar coligações que assegurem a governabilidade, o discurso tem que conter o debate, o acordo e o esclarecimento de quais são os assuntos essenciais que merecem um pacto de regime. A ideologia não tem sempre que ser expressa em confronto. Pode – e deve – ser uma das formas de competitividade por ideias e/ou por projetos nacionais. E se o debate de ideias da divergência à convergência não chega ao eleitorado, os políticos não estão a conseguir fazer o seu trabalho.
Sim, há problemas nas estratégias de sucessão: nem sempre funcionam, pode haver falta de imaginação na reinvenção de partidos a precisar desesperadamente de mudanças. Há quem não resista a chamar Mini-Merkel a Kramp-Karrenbauer. Há quem argumente que as sucessões são meio caminho andado para correção cirúrgica de problemas da liderança, deixando pouco espaço para os novos líderes, especialmente se tiverem que suceder a figuras marcantes – e goste-se ou não, a chanceler alemã é uma dessas figuras.
Mas a forma como as “duas senhoras que se seguem” se estão a afirmar-se nos partidos – através da paixão positiva pelos elementos que constituem a identidade partidária pode, por si só, constituir uma renovação. Necessária, porque a crise alemã não acabou – está apenas adiada – e os próximos anos vão ser exigentes do ponto de vista dos desafios, das políticas e da sua implementação. E, certamente, do projeto europeu.
Começamos este artigo com a crise em Itália, que abriu muitos olhos europeus, porque as eleições deram o primeiro e o segundo lugar a partidos com ideias contrárias aos valores que nos nortearam nos últimos 70 anos. O que sinaliza, já sem grande espaço para dúvidas, que os projetos nacionalistas e extremistas estão cada vez mais vigorosos. Mas é muito importante refletirmos também nas questões de Alemanha. Afinal, quer se queira quer não, por estes dias, Berlim é o coração político e económico da Europa. E os últimos meses vêm-nos mostrar que, se as questões identitárias ficam de fora, os poderes económico e político ficam à deriva. À mercê de partidos cujas origens ideológicas não radicam necessariamente na Europa pós II Guerra Mundial, mas em ideologias e conceitos sociais que já achávamos que tinham desaparecido de vez do velho continente.
Investigadoras do IPRI