Desde meados de 2022 que os portugueses vivem uma crise sem precedentes no acesso aos medicamentos nas farmácias. Uma crise que persiste muito embora algumas medidas tenham sido tomadas. Uma crise que o Ministro da Saúde insiste em desmentir, mesmo quando confrontado com as denúncias dos profissionais do sector. Uma crise que afecta diariamente milhares de portugueses, mas que é abafada pelo silêncio do espaço público. Uma crise que se vive a cada atendimento, em todas as farmácias deste País. Se dúvidas persistirem, pergunte ao seu farmacêutico.
Como as medidas implementadas pouco ou nada ajudaram na resolução da crise, importa questionar que mais se pode fazer. Uma das soluções apresentadas pelos diferentes agentes do sector do medicamento tem sido usar o potencial desperdiçado dos farmacêuticos comunitários. Como? Com a implementação de novos serviços farmacêuticos nas farmácias.
Estes novos serviços farmacêuticos, nomeadamente renovação terapêutica e adaptação de prescrição, seriam da exclusiva responsabilidade dos farmacêuticos e facilitariam o acesso ao medicamento sem necessidade de recorrer ao médico, também eles sobrecarregados, nos casos em que há possibilidade de resolução rápida. E porquê os farmacêuticos? Porque nas farmácias só os farmacêuticos têm competência e independência deontológica para os desempenhar.
Novos serviços da exclusividade do farmacêutico significariam também, e em consequência, um aumento de tarefas e de responsabilidades. Impõe-se por isso perguntar se os farmacêuticos estão preparados para receber e desempenhar estas novas tarefas e se as farmácias têm farmacêuticos suficientes para que as mesmas sejam executadas com qualidade e segurança.
Se perguntarmos aos proprietários de farmácia estes afirmam que sim, que as farmácias estão preparadas para que estes novos serviços sejam implementados, baseando essa afirmação no bom desempenho durante o período pandémico, no conhecimento técnico dos farmacêuticos e na existência de quadros farmacêuticos robustos nas farmácias. Afirmam também que esta é a oportunidade para valorizar e integrar o farmacêutico comunitário no SNS.
Se perguntar ao seu farmacêutico se está preparado para executar os novos serviços este responder-lhe-á que não tem condições técnicas, que não vai ter tempo para executar todas as tarefas com qualidade, que está exausto; que antes de se falar em novos serviços deveriam ser resolvidos os problemas actuais, nomeadamente a falta de uma carreira real, a falta de actualização salarial, por rever há mais de uma década; dir-lhe-á, acerca dos horários superiores a 40 horas semanais a que é submetido sucessivamente, sobre a falta de recursos humanos, sobre a falta de oportunidades de formação profissional, sobre a quase impossibilidade em conciliar a vida pessoal com a vida profissional; irá contar-lhe sobre as pressões exercidas pelos proprietários para que os interesses dos doentes sejam colocados em segundo plano e a desautorização que sentem por parte dos mesmos, ao permitirem que tarefas exclusivas dos farmacêuticos sejam executadas por outros profissionais.
Se perguntar ao seu farmacêutico, estas e outras situações serão mencionadas. Com base nisto, parece-lhe que os farmacêuticos estão preparados para executar novos serviços?
Então porque estão os proprietários de farmácia tão interessados na vinda de novos serviços? Não saberão os proprietários que são necessários mais farmacêuticos nas farmácias? Que antes de se implementarem novos serviços é necessário dar melhores condições laborais e responder aos problemas presentes? Porque é que são os proprietários de farmácias os primeiros a afirmarem que os farmacêuticos querem estes serviços e que estão preparados? Para responder a estas questões, e de forma a esclarecer a opinião pública, é importante frisar: os proprietários de farmácia não representam os farmacêuticos.
Um proprietário de farmácia, mesmo quando é farmacêutico, terá sempre a sua opinião condicionada por tudo o que implica ser proprietário de tal estabelecimento.
Por isso, ao ver proprietários de farmácia a pressionarem para que esses novos serviços cheguem rapidamente às farmácias e ao falarem em valorização do farmacêutico, sem mencionarem os problemas atuais deste grupo profissional, questiono: que valorização é esta que os proprietários pretendem?
Valorizar significa dar destaque, dar maior importância. E isto aplicado à prática e à organização da farmácia, significaria dar mais oportunidades de qualificação profissional, mais responsabilidades. Significaria olhar para os problemas e dar-lhes soluções. Será isso que os proprietários pretendem quando falam de valorização do farmacêutico? Estarão finalmente motivados para resolver os problemas pendentes e responder às angústias dos farmacêuticos?
Sempre que se tenta abordar estes assuntos, as respostas são evasivas, frias e culminam com frases características: ‘’cada farmácia gere como entende os seus recursos humanos’’, “os farmacêuticos estão bem e já ganham o suficiente”, “as farmácias não conseguem dar melhores condições”, ‘’quem está mal que se mude’’, ‘’ os farmacêuticos estão a levantar falsos problemas porque não querem é fazer’’, ‘’se há problemas, mais tarde resolvemos. Importa é chegarem os serviços’’.
Nunca se fala dos problemas dos farmacêuticos. Nunca se fala em procurar soluções. Nunca se fala em melhorar as condições laborais.
Conclui-se assim que os proprietários de farmácia têm interesses próprios na vinda dos novos serviços, que lhes trarão um benefício económico, mas não estão preocupados com os problemas da classe! Pretenderão eles que estes novos serviços sejam também executados por outros profissionais? Que novamente os farmacêuticos sejam desautorizados? Que os problemas crónicos persistam e se agudizem? Não perceberão que é do interesse da pessoa com doença que alguns serviços sejam da exclusividade do farmacêutico, em todas as farmácias, e que não fique ao critério de cada uma? Que a valorização implica separação clara de tarefas e respeito pela autonomia deontológica do farmacêutico?
Vejo por isso, em toda esta situação, uma grande hipocrisia. Os proprietários de farmácia ao falarem na valorização dos farmacêuticos não deviam fugir dos problemas apresentados nem deviam dar respostas evasivas sobre os mesmos. Continuar nesse registo é pura demagogia e os farmacêuticos não merecem mais discursos enganadores sem respostas concretas. É tempo de acabar com a propaganda: a vinda de novos serviços nas condições actuais não é a panaceia apregoada pelos proprietários de farmácia. Pelo contrário: apenas agravará a situação laboral dos farmacêuticos e consequentemente a qualidade dos serviços prestados.
Insisto no repto: estamos exaustos. Mas não vamos desistir de quem nos procura e de quem reconhece o nosso trabalho. Não vamos desistir do SNS. Pretendemos que a implementação de novos serviços farmacêuticos conduza a uma verdadeira valorização do farmacêutico de forma a correspondermos aos interesses máximos da pessoa com doença. Só assim teremos condições para executar com qualidade e segurança a renovação terapêutica, a adaptação da prescrição e os outros serviços que já hoje deviam ser da nossa exclusiva responsabilidade! A bem de todos, resolvamos os problemas dos farmacêuticos nas farmácias! Resolvamos a crise de acesso ao medicamento!