O Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza é assinalado anualmente a 17 de outubro. Teve início em 1987, quando o Padre Joseph Wresinski reuniu 100 000 pessoas na Praça dos Direitos Humanos e Liberdades, em Paris, na inauguração de uma pedra em homenagem às vítimas da pobreza, fome, violência e medo. Nesta pedra pode ler-se: “Onde homens e mulheres são condenados a viver na pobreza, os direitos humanos são violados. Unirmo-nos para garantir que esses direitos sejam respeitados é nosso dever solene”.

A pobreza afeta, infelizmente, um grande número de pessoas em todo o mundo, mas apesar dos progressos históricos estamos a assistir a tendências extremamente preocupantes quanto à pobreza e violência contra as mulheres no mundo. Por esse motivo gostava de chamar a atenção através deste artigo de opinião sobre as questões na pobreza no feminino, numa época em que novos desafios se colocam quer no mercado de trabalho com os avanços da inteligência artificial, quer pelo contexto de guerra que se vive em vários pontos do Globo. Quem são as mulheres deste século? Será possível antever a sua importância num mundo à beira de uma nova revolução?

Ester Boserup, no seu livro publicado em 1970, O papel das mulheres no desenvolvimento económico, foi pioneira na análise que nos deixou sobre a contribuição das mulheres na economia, especialmente nas sociedades agrárias. No seu tempo foi visionária entendendo que as mulheres estavam a ser negligenciadas no seu papel vital para a economia, principalmente nos mercados agrícolas, onde desempenhavam tarefas essenciais para a produção de alimentos. Boserup destacou como a modernização e a industrialização frequentemente marginalizavam as mulheres, restringindo seu acesso a tecnologias e recursos e defendeu a integração das mulheres no desenvolvimento económico global como um fator crucial para o progresso.

As Nações Unidas declararam uma Década para as Mulheres entre 1975 e o ano de 1985, esta ação tinha como objetivo destacar as contribuições das mulheres para o desenvolvimento e procurar promover maior igualdade. Porém, já no final dos anos 1980, o termo “feminização da pobreza” revelou que, apesar dessas novas oportunidades, as mulheres continuavam em desvantagem em relação aos homens. Esse fenómeno, especialmente acentuado na velhice e entre mulheres migrantes, reflete desigualdades estruturais persistentes, como a segregação no mercado de trabalho e a disparidade salarial. Presentemente a “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” estabeleceu metas com o objetivo de erradicar a pobreza, mas também de promover uma maior equidade entre homens e mulheres. Procura, também, esta Agenda mobilizar os decisores políticos e a sociedade civil em geral para a implementação de medidas que corrijam as disparidades ou mesmo mitiguem as causas e as consequências da pobreza.

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O combate à pobreza e a correção das desigualdades sociais são duas prioridades que exigem determinação, mas também responsabilidade coletiva.

A pobreza tem um impacto mais acentuado nas mulheres, especialmente na velhice e nas mulheres migrantes, um fenómeno que reflete desigualdades de género persistentes em muitos países europeus. Em toda a Europa, as mulheres são mais propensas a viver em situação de pobreza do que os homens, devido a fatores como a desigualdade salarial, a segregação no mercado de trabalho, o acesso desigual a pensões e a sua maior responsabilidade pelos cuidados familiares.

Em Portugal, as mulheres desempenham um papel predominante no cuidado de familiares, sendo que 84% dos cuidadores informais são do género feminino. Estas mulheres dedicam-se a cuidar de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, muitas vezes sem remuneração e com um impacto significativo na sua própria qualidade de vida, saúde mental e participação no mercado de trabalho. Estes fatores agravam-se com a idade, deixando um número significativo de mulheres idosas em risco de pobreza.

Destaco ainda nesta análise o conceito de “interseccionalidade” um instrumento analítico que serve para estudar as desigualdades, permitindo a compreensão de como o género interage com outras características ou identidades pessoais e de como essas interações contribuem para experiências únicas de discriminação. A interseccionalidade evidencia como essas desigualdades se fundem com outras formas de discriminação, intensificando vulnerabilidades pré-existentes e criando experiências de opressão específicas para as mulheres. Assim, ao considerar múltiplos fatores como raça, classe, país de origem, orientação sexual, entre outros, torna-se possível entender as dinâmicas complexas que acentuam estas vulnerabilidades.

De acordo com os dados mais recentes, as mulheres na União Europeia continuam a ser desproporcionalmente mais afetadas pela pobreza e pelo risco de exclusão social em comparação aos homens. Em 2023, cerca de 94,6 milhões de pessoas (21,4% da população da UE) estavam em risco de pobreza ou exclusão social, com uma taxa maior para as mulheres (22,4%) em comparação aos homens (20,3%). Na UE, 37,6 % dos homens estrangeiros estavam em risco de pobreza ou exclusão social em 2022, em comparação com 40,6 % entre as mulheres estrangeiras. Embora, tenha havido melhorias globais desde 2020, a disparidade de género ainda persiste, especialmente para mulheres que enfrentam formas interseccionais de discriminação.

A desigualdade no acesso a rendimentos adequados ao longo da vida é um dos principais fatores que levam a este cenário. As mulheres europeias, em média, recebem pensões 33% inferiores às dos homens, devido a carreiras profissionais mais curtas, interrupções no emprego relacionadas com responsabilidades familiares e salários mais baixos. Além disso, muitas delas ocupam empregos a tempo parcial ou precários, o que afeta negativamente os seus direitos à segurança social e às suas pensões futuras.

Em Portugal, a realidade é semelhante à do resto da Europa, embora alguns desafios sejam ainda mais agudos. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) para 2022, 23,8% das mulheres portuguesas com 65 ou mais anos viviam em risco de pobreza, enquanto entre os homens desta mesma faixa etária, a percentagem era de 17,2%.

As pensões das mulheres portuguesas também são significativamente mais baixas do que as dos homens. Em média, as mulheres reformadas em Portugal recebem cerca de 25% menos do que os homens, agravando a pobreza na velhice. Além disso, muitas mulheres idosas dependem quase exclusivamente da pensão de sobrevivência, que é significativamente mais baixa.

Outro grupo particularmente vulnerável em Portugal são as mulheres que vivem sozinhas. De acordo com o INE, 38% das mulheres idosas que vivem sozinhas estão em risco de pobreza, um número que reflete a insuficiência das pensões e a falta de redes de apoio. Igualmente, a população migrante vive situações de maior vulnerabilidade no processo de inclusão social, existindo uma relação entre os níveis de pobreza do país anfitrião e a pobreza em que se encontram os migrantes.

De acordo com os mais recentes dados divulgados pela UNICEF, mais de 370 milhões de raparigas e mulheres foram vítimas de violação ou abuso sexual antes dos 18 anos, o que significa que uma em cada oito raparigas sofreu violência sexual durante a infância. Em Portugal, a situação também é alarmante, com o mesmo relatório da UNICEF a indicar que, em média, é reportado um caso de violência sexual por dia de escola no país. Estes números sublinham a urgência de intensificar esforços para combater esta grave violação dos direitos das crianças e reforçar mecanismos de proteção e apoio às vítimas.

No discurso de tomada de posse como Presidente da Comissão Europeia para o mandato 2024-2029, Ursula von der Leyen reforçou o seu compromisso em consolidar os avanços na igualdade de género na União Europeia, destacando conquistas significativas, mas alertando para desafios que ainda persistem. Reconhecendo o progresso alcançado, desde a presença crescente de mulheres nos conselhos de administração até à implementação de medidas de transparência salarial, Von der Leyen sublinhou que as desigualdades de género ainda estão longe de ser eliminadas.

A Presidente-eleita manifestou preocupação com tendências alarmantes: o aumento do feminicídio, a violência contra as mulheres e os inúmeros obstáculos que ainda limitam o avanço das mulheres no mercado de trabalho e na educação. Estes desafios persistem em toda a Europa, evidenciando que, apesar das conquistas, a igualdade de género enfrenta retrocessos em áreas fundamentais.

Como resposta, Von der Leyen anunciou a criação de uma nova Estratégia para a Igualdade de Género para o período pós-2025. Este plano irá abranger uma série de políticas destinadas a reforçar os direitos das mulheres, com um foco especial na luta contra a violência baseada no género, bem como na promoção do empoderamento feminino em todos os domínios: desde a participação política até ao mercado de trabalho. Esta estratégia será implementada em toda a UE e nas instituições comunitárias, refletindo um compromisso renovado em avançar com a agenda de igualdade.

Para reforçar este esforço, Von der Leyen revelou a iniciativa de criar um roteiro dos direitos das mulheres, que será apresentado no Dia Internacional da Mulher do próximo ano. Este roteiro pretende ser uma ferramenta de orientação estratégica, definindo metas concretas para a promoção dos direitos das mulheres em toda a União Europeia, consolidando assim uma visão clara de um futuro mais igualitário e justo.

A proposta da Presidente eleita assinala um passo crucial para garantir que os direitos das mulheres continuem a ser uma prioridade política na próxima década, numa Europa que ambiciona ser líder global na luta pela igualdade de género.

Olhando para o futuro com base nas lições que a história nos oferece, parece pois que as mulheres são fundamentais para a transformação das relações de trabalho e na melhoria das políticas de bem-estar social. A sua liderança será relevante para impulsionar mudanças que promovam um mundo mais inclusivo e sustentável. A verdadeira força reside na diversidade e na colaboração “entre homens e mulheres ou entre mulheres e homens” que juntos criam uma sociedade mais equilibrada e inovadora. É essa interação mais paritária e harmoniosa que poderá contribuir para se enfrentarem os desafios globais do futuro da humanidade. Mas para chegar a esse futuro importa continuar hoje a corrigir estas disparidades e atos hediondos de violação da dignidade feminina.