A “doença das gémeas” é a Atrofia Muscular Espinhal tipo 1. Por esta altura se calhar não sabia, ou já não se recordava. Falamos tanto sobre “a doença das gémeas”, mas falamos mesmo? Sabe que doença é? O que a causa, as consequências, os tratamentos disponíveis?

Continuamos a discutir esta doença, mas falamos do que importa? Do acesso ao diagnóstico, diagnóstico precoce, apoios, terapias e a crescente (e maravilhosa possibilidade da) terapia genética?  Dos doentes? Dos doentes? Dos doentes e suas famílias? Estaremos em tantas discussões à procura das respostas certas?

A Atrofia Muscular Espinhal é uma doença genética, que resulta do silenciamento bialélico (das cópias presentes nos cromossomas materno e paterno) do gene SMN1. Este gene traduz-se numa proteína de sobrevivência do 2º neurónio motor e sem ela este morre e a “mensagem movimento” não chega ao músculo. Caracteriza-se assim por fraqueza e atrofia muscular simétrica, mais proximal que distal, progressiva e irreversível (para uma cognição normal). Existem 5 tipos (0-4) e no tipo 1, sem tratamento, os indivíduos afectados não chegam a sentar sozinhos e resulta em morte antes dos 2 anos de vida. A variabilidade de início de sintomas e gravidade está dependente (embora não exclusivamente) do número de cópias SMN2 – uma fenocópia responsável por produzir 10%-15% da proteína e que pode existir em número variável (quanto mais cópias, melhor o prognóstico). Esta fenocópia difere do gene SMN1 em apenas 5 nucleótidos (5 “letras” diferentes) e uma destas alterações conduz à perda de parte da proteína (o exão 7).

Os tratamentos aprovados pela FDA, EMA e Infarmed aos dias de hoje são dois: interferência na leitura do gene SMN2 através de um ASO (oligonucleótido antisense) – o Nusinersen, que permite que o gene SMN2 seja lido sem a perda deste exão 7; e adição do gene SMN1 através de um vector viral (o tão badalado Zolgensma – nome comercial). Apesar de não ter sido ainda cabalmente demonstrada superioridade clínica do segundo em relação ao primeiro, há no entanto uma vantagem clara: o Zolgensma é administrado em toma única endovenosa, enquanto a administração do Nusinersen é intratecal e tem de ser repetida, inicialmente de 15 em 15 dias (3 doses), uma 30 dias após e depois de 4 em 4 meses (comulativamente é um fármaco mais caro, apesar da fama do Zolgensma).

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O Nusinersen foi aprovado pelo Infarmed em Dezembro de 2018 e o mediatismo Zolgensma começou poucos meses depois com o “caso Matilde”. Por esta altura falava-se do Zolgensma como se de uma cura se tratasse (é apenas modificador da doença e os seus resultados dependem da idade em que é administrado) e a solidariedade do povo português foi avassaladora. A utilização excecional (AUE) ocorreu em Julho de 2019 – ainda sem parecer positivo pela Agência Europeia do Medicamento, o que só ocorreu de forma condicionada em Maio de 2020, com aprovação em Maio 2022 (em 2019 tínhamos apenas um ensaio de fase 3, com 22 doentes, concluído – STRIVE US – e aguardavam-se os resultados do STRIVE-EU). Fomos dos primeiros países do mundo a aprovar este medicamento. O nosso SNS é gratuito, fácil acesso (ainda bem), mas uma oferta destas para quem está desesperado, é mais do que apelativa – podemos em consciência dizer que numa situação destas não arranjaríamos um avô português, mesmo que ele não existisse? (Atenção!!, não estou a dizer que foi o que aconteceu, estou apenas a tentar com esta exposição, demonstrar a vulnerabilidade do nosso sistema de saúde).

Estamos numa desenfreada procura por respostas, mas para responder ao quê?

Teríamos aprovado de forma tão célere o Zolgensma se não tivesse existido um crowdfunding para a Matilde que catapultou a atenção e solidariedade nacional? Teria acontecido se o público e pais tivessem devidamente informados sobre as limitações e riscos (desconhecidos a longo prazo) do medicamento? Comprometemos a solidariedade social tão necessária quando falamos de doenças raras? Teria acontecido o “caso gémeas” sem o “caso Matilde”? Existiria um “caso gémeas” sem o mediatismo (e aproveitamento político?) que se gerou? Comprometemos aprovações futuras?

Estamos mesmo a responder às perguntas certas?  Ou podemos aproveitar para pensar na doença, nas doenças raras, no acesso, no que falta, nos médicos, na viabilidade do SNS?

Ora vejamos. A Genética está a revolucionar a forma como fazemos Medicina, permitindo diagnósticos mais rápidos, preditivos, pré-sintomáticos, com impacto na prevenção, seguimento e tratamento das doenças. São variadas as aplicações crescentes em diagnóstico pré-natal não invasivo, rastreio neonatal, testes pré-concepcionais de portadores e a terapia genética (seja por adição ou edição de um gene) está apenas no início. Muitas destas aplicações irão traduzir-se em ganhos imensos, para o doente, famílias, sociedade e até económicos. Mas acontecerá com todas?

Como mãe, como médica de Genética vivo estes avanços com enorme entusiasmo e acreditando que ganhos em saúde são ganhos ponto! Mas como cidadã, serão todos?

Os medicamentos órfãos (estatuto especial para um medicamento utilizado para tratar uma doença ou condição rara) são uma tremenda mais valia, mas baseados em ensaios clínicos com poucos doentes e com um único braço e são na sua maioria muito caros (porque o preço é distribuído pela rara população alvo).

Aos dias de hoje o PIB sobe 1,5% ao ano e a despesa em saúde 7,4% ao ano. Um quarto desta despesa é com medicamentos, e ainda que a Oncologia seja a área com maior peso, são os medicamentos órfãos que apresentam o maior aumento (e estamos apenas no início, será tendencialmente cada vez maior).

Por muito que acreditemos que para a saúde não devem existir restrições, o dinheiro é finito, a sustentabilidade do SNS tem ser pensada e surgem as questões difíceis. Será comportável? Será sempre justificável? (mesmo quando não se traduz em qualidade de vida e diminuição de custos a longo prazo)? Será possível no atual modelo do SNS?

Vamos falar do que importa? Do acesso ao diagnóstico, diagnóstico precoce, rastreios genéticos, prevenção, seguimento, centros de referência, terapias personalizadas? Podemos falar dos doentes? E novamente, e novamente dos doentes e das suas famílias?

Podemos discutir o SNS, acesso, sustentabilidade? Podemos (e devemos) até falar dos médicos e de como é importante sermos mais atrativos para os mesmos, em vez de abrir novas faculdades e cursos para novos desiludidos e incapazes de aguentar um barco cego?

Podemos discutir estratégias a curto e longo prazo, apoiadas no conhecimento mais atual, do qual a medicina personalizada (baseada na genética) é um pilar fundamental? Ou vamos continuar nesta desenfreada atribuição de culpas?