A 9 de Setembro de 2016, no jantar de recolha de fundos “LGBT por Hillary” em Nova Iorque, a candidata democrática à presidência dos Estados Unidos punha num mesmo saco, o dos “deploráveis”, a maioria dos apoiantes de Donald Trump. E, encorajada pelos risos e aplausos da assistência, prosseguia, especificando o conteúdo do dito “basket of deplorables”, carregado de “racistas, sexistas, homofóbicos, xenófobos e islamofóbicos”; carregado, enfim, de desqualificados opositores políticos.
Só Deus sabe o que leva um eleitor, sobretudo um indeciso de última hora, a votar nesta ou naquela candidatura numa situação de oposição radical, mas a bravata de Hillary talvez lhe tenha custado a eleição. Caricaturar os adversários políticos de forma maniqueísta e enfiar num mesmo saco milhões de votantes, chamando-lhes deploráveis, tinha tudo para ter consequências desagradáveis. E teve, porque, ao contrário do que imaginam algumas pseudo-elites, o povo não é estúpido.
Com as transformações geopolíticas que vieram com o fim da Guerra Fria, as classes populares e parte das classes médias do Ocidente viram-se marginalizadas e penalizadas pelo “sistema”. Foi, também, o preço da melhoria de vida nas periferias asiáticas, mas o que é certo é que quem o pagou foi parte significativa dos cidadãos da América do Norte e da Europa ocidental. Era, por isso, natural que a mudança do panorama político do Ocidente viesse pela mão dos lesados, de “deploráveis” como os operários das fábricas de automóveis de Detroit e das siderurgias de Pittsburgh ou os trabalhadores comunistas franceses que, no início do século XXI, passavam do PCF para o Front National.
Os velhos liberais da mão invisível ou os marxistas de uma luta de classes determinadas pelo lugar na Produção não deviam ter estranhado o facto de a decadência da indústria e a desindustrialização terem mudado as convicções e o sentido de voto do povo. Mas estranharam. E estranham.
E alhearam-se. Até porque, entretanto, os valores de Deus, de Nação, de Família, de Justiça Social tinham já sido abandonados numa deriva – engolidos, à direita, pelo globalismo agnóstico, mundialista ou federalista europeu; e, à esquerda, pelas micro-causas, as micro-ofensas e as macro-inquisições diacrónicas e sincrónicas de minorias urbanas de género e espécie, apostadas em diluir no seu arco-íris planetário as lutas pela igualdade social, racial e sexual do anterior paradigma.
Mas, aparentemente, havia vazios deixados pelo fim de alguma prosperidade e estatuto, pelo declínio do cristianismo social e pela falência do “sonho comunista” que nem mesmo o mais inclusivo e frondoso dos arco-íris conseguia preencher. Assim, os “danados da terra” – que, juntamente com as classes médias empobrecidas, reagiam a uma “modernização dos costumes” imposta de cima, aos “novos direitos humanos” endossados pelos milionários do World Economic Forum, à imigração descontrolada e à corrupção que viam generalizar-se – passavam de “vítimas da fome”, a defender e a mobilizar, a “deploráveis”, a desdenhar e a cancelar.
Como sempre acontece em épocas de mudança radical e desorientação geral, perante o aparecimento de novas forças, as forças instaladas qualificavam como ressentidos ou enganados os que, descontentes com as alternativas disponíveis, migravam para novos movimentos políticos.
De resto, como o vazio ideológico acaba por ser preenchido, o aparecimento à esquerda e à direita de novos partidos e novos líderes não era de surpreender. À direita, onde apareceram com força, a par de algum ateísmo pós-moderno e populismo simplista comum ao das esquerdas mas de polo oposto, surgia um resgate e uma renovação de valores identitários e vitais; valores espirituais e temporais, éticos e políticos que tinham estado durante séculos em vigor na Europa, no Ocidente, e surgido noutros pontos do globo.
Para os combater e combater tudo isto, o sistema instalado – que à esquerda, ao centro e até ao centro direita não é já o sistema tradicional, mas uma versão esvaziada e contaminada pela retórica e pelo bullying ideológico das esquerdas mais extremas – parece disposto a tudo. E cego às suas próprias derivas totalitárias e à disrupção que encerra a “legislação avançada” que levianamente encoraja ou permite, propõe-se empenhar as armas poderosas que tem na cultura, no ensino e na comunidade mediática numa cruzada contra uma “extrema-direita” que equipara aos totalitarismos fascistas e nazis ou aos autoritarismos ditatoriais do passado.
Ora uma das coisas que caracteriza estas novas direitas – populistas, populares, nacionais-conservadoras ou o que se lhes quiser chamar – é precisamente o facto de serem democráticas no acesso ao poder e no seu exercício, conquistando e mantendo o poder democraticamente e cedendo o lugar quando o perdem eleitoralmente – com mais ou menos ruído, mas cedendo.
Nestas circunstâncias, serão as linhas vermelhas que alguns pretendem aplicar-lhes, racionais, democráticas, desejáveis, ou sequer eficazes e respeitadoras da vontade do povo?