A discussão sobre a eventual função social do direito de propriedade e, genericamente, de todos os demais direitos individuais, é, seguramente, tão antiga quanto o próprio conceito de propriedade privada. Ao longo de toda a história do Direito Civil é visível uma tensão, com contornos e resultados variáveis, entre os interesses dos titulares de direitos individuais e os hipotéticos interesses de terceiros e os interesses difusos da própria comunidade. As suas raízes imediatas são, porém, recentes, remontando ao último quartel do século XIX e ao processo de socialização do Direito Civil, então iniciado.
Numa perspetiva macro, a história contemporânea do Direito Civil pode ser sistematizada em dois grandes períodos: o período do Direito Civil Liberal e o período do Direito Civil Social. O primeiro, saído da Revolução Francesa (1789), colocou o direito de propriedade dos cidadãos ao lado da igualdade e da liberdade, enquanto princípios nucleares da nova sociedade pós-feudal. O segundo, incorporando as transformações sociais, filosóficas e políticas do século XIX, profundamente marcado pela Revolução Industrial, reconhece que todos os direitos individuais devem ser entendidos numa perspetiva social ou comunitária.
A conceção socializante dos direitos individuais impôs-se, transversalmente, no século XX, adequando-se e adaptando-se a todas as ideologias, quer as mais radicais, quer as mais moderadas. Recorde-se o impactante artigo 153, § 3, da Constituição de Weimar (1919): “A propriedade obriga”.
A realidade jurídica portuguesa acompanhou esse processo universal. A Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 eram particularmente liberais, na aceção com que o termo é aqui empregue, como também o era o Código Civil de 1867. A socialização do Direito Civil português, iniciada no seio da academia coimbrã, materializa-se, primeiro, na Constituição de 1933, em especial no seu artigo 35.º: “A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade, podendo a lei determinar as condições do seu emprego ou a exploração conformes com a finalidade colectiva”. Seguiu-se o Código Civil de 1966, em vigor, reconhecidamente social.
Curiosamente, a Constituição de 1976 não contém qualquer artigo análogo ao artigo 35.º da Constituição de 1933 ou ao artigo 153, § 3, da Constituição de Weimar (1919). Esta ausência não impediu o nosso Tribunal Constitucional de imputar ao direito de propriedade, de forma constante, uma função social. Todavia, como bem explica a Conselheira Maria Lúcia Amaral (hoje Provedora de Justiça), no acórdão n.º 421/2009, a atribuição dessa natureza funda-se na necessidade de compatibilizar o direito de propriedade com outras exigências constitucionais e já não, acrescentamos nós, numa sujeição dos direitos individuais a interesses difusos politicamente determinados.
Do ponto de vista técnico-jurídico e, estamos em crer, também do ponto de vista político-legislativo, a diferença é imensa, na medida em que a função social não é intrínseca ao direito de propriedade, nos termos em que constitucionalmente este foi consagrado. Isso não significa que o direito de propriedade seja absoluto, no sentido de prevalecente sobre todos os demais direitos, liberdades ou garantias constitucionais, nem que os nossos governantes estejam impedidos de defender, legislativamente e sempre dentro dos limites da Constituição, o direito à habitação ou qualquer outro direito em prejuízo do direito à propriedade. Todavia, todas as medidas tomadas nesse sentido deverão sempre ser entendidas como efetivas limitações ou coartações da liberdade que caracteriza a propriedade no Direito português vigente.