Chamado a pronunciar-se sobre um projeto de lei que prevê a sua deslocalização para a cidade de Coimbra, o Tribunal Constitucional emitiu um parecer (com três votos contra), que, além do mais, contém a seguinte afirmação: «Num país com tradição antiga de centralismo, em que os órgãos de soberania sempre tiveram a sede em Lisboa, a transferência da sede do Tribunal Constitucional contribuirá certamente mais para desprestigiar o órgão do que para criar uma “nova centralidade” fora da capital.»

À falta de senso da iniciativa parlamentar em solicitar ao TC um juízo sobre um projeto de lei tendente à sua própria deslocalização juntou-se, de forma surpreendente, a indignidade argumentativa do documento que veio a ser produzido pelo TC, na parte em que se associa a transferência para Coimbra a um efeito de desprestígio do órgão. Quem subscreve o parecer sabe muito bem que o prestígio do TC resulta das funções que lhe cabem, do prestígio e da reputação de quem o serve, bem como da qualidade e correção das suas decisões. Para este efeito, para o prestígio do TC e para a perceção dos cidadãos quanto ao valor jurídico deste órgão, é apenas isso que conta e não, evidentemente, o sítio que o aloja. Quem subscreve o parecer sabe bem que isto é assim. A referência do parecer ao tópico do “desprestígio” sugere igualmente que, numa espécie de “competição entre órgãos de soberania”, que “sempre tiveram a sua sede em Lisboa”, a transferência do TC para Coimbra o diminuiria perante esses outros órgãos: o argumento contra a deslocalização surge, aqui, para a defesa da dignidade do TC, como se a transferência para Coimbra, ou a saída de Lisboa, manchasse a soberania do órgão. Os juízes que subscrevem o parecer perfilham a inconstitucional ideia de que “a tradição antiga de centralismo” é para manter; é para manter por ser “tradição antiga”, e, pasme-se, o centralismo revela-se afinal como fator de prestígio institucional. Tudo isto, isto sim, desprestigia gravemente o TC.

O parecer alude ainda ao “valor simbólico inerente à presença dos poderes do Estado (…) na capital do país”; decerto por defeito meu, não alcanço que valor simbólico seja esse. A respeito de elementos simbólicos, recordo o que tive oportunidade de escrever em declaração proferida em análogo parecer do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais: “Percebo na proposta [legislativa] uma nota simbólica, a assinalar o que pode constituir o início de um imprescindível processo justo e moderno de compreensão do País inteiro; promover a distribuição de altas instituições do Estado pelo território representa apenas uma alínea desse processo geral, que, em muitos casos, enfrenta apenas obstáculos marginais.” Parece-me ser precisamente o caso do parecer do TC: só lá vejo obstáculos marginais, fundados em argumentos inaceitáveis.

P.S.: Posteriormente ao parecer, o Tribunal Constitucional terá vindo esclarecer que a expressão desprestígio “não se refere à deslocação para a cidade de Coimbra (ou qualquer outra cidade)”, mas sim ao facto de a proposta “evidenciar uma diferenciação arbitrária no universo dos tribunais”, nomeadamente em relação “aos restantes órgãos de soberania com sede em Lisboa”, o que “descaracteriza e desvaloriza gravemente o significado da jurisdição constitucional”. Duas notas sobre o esclarecimento: i) que não há uma diferenciação arbitrária no universo dos tribunais é o que resulta de o projeto de lei também prever a deslocalização da sede do Supremo Tribunal Administrativo – o qual, socorrendo-me de palavras do parecer do TC sobre si próprio, também “não é um órgão jurisdicional qualquer”; ii) a insistência clara na ideia do desprestígio da deslocação do TC para a cidade de Coimbra (ou qualquer outra cidade), acentuando, agora de forma ainda mais enfática do que no parecer, que a deslocação “descaracteriza e desvaloriza gravemente o significado da jurisdição constitucional”; ou seja, para quem emitiu o esclarecimento, a deslocação “descaracteriza” [?] e “desvaloriza” [?] o significado da jurisdição constitucional; apetece dizer: importa-se de explicar? 

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