Não existe em Portugal um regime legal sobre o reconhecimento unilateral pelo Estado (ou por outras entidades públicas) do dever de pagar indemnizações às vítimas de quaisquer ofensas ou prejuízos causados por atos ou omissões de agentes públicos ou que, em geral, resultem do funcionamento anormal dos serviços públicos. Por ser assim, os lesados pelas ações e omissões do Estado têm de recorrer aos tribunais no exercício de um direito de ação para efetivação da responsabilidade civil do Estado.

Sucede, porém, que, em 2017, inaugurou-se, sem fundamento legal e por iniciativa do Governo, uma forma de reconhecimento unilateral pelo Estado do dever de indemnizar determinados prejuízos, que, concomitantemente, o Estado assumiu serem-lhe imputáveis. Foi o que ocorreu com a assunção de responsabilidade de pagamento de indemnizações decorrentes das mortes e de ferimentos graves das vítimas dos grandes incêndios daquele ano. Para o efeito, foi criado um conselho composto por juristas com o encargo de definir critérios de cálculo do valor das indemnizações; a fixação do valor foi atribuída ao Provedor (mais tarde, Provedora) da Justiça.

Mais recentemente, o Governo voltou a assumir a responsabilidade do Estado pelo pagamento de uma indemnização pela morte do cidadão Ihor Homeniuk: com desvios (designadamente, a dispensa do conselho de juristas), retomou-se o modelo de atribuir à Provedora de Justiça a definição do montante da indemnização.

Apesar das diferenças evidentes entre os dois tipos de casos – dano da morte provocado por incêndios, em 2017, e por homicídio, em 2020 – e, naturalmente, sem questionar a bondade e a justeza das indemnizações atribuídas pela Provedora da Justiça, não vemos como se pode deixar de questionar o modelo seguido pelo Governo, naqueles casos, de reconhecimento unilateral da responsabilidade do Estado. Trata-se, em primeiro lugar, de um modelo baseado em decisões avulsas (as quais, aliás, só viram a luz do dia por força da pressão da opinião pública), que prescinde, em absoluto, de um enquadramento legislativo de base que defina em que circunstâncias concretas pode o Governo assumir, em nome do Estado, a responsabilidade pelo pagamento de indemnizações. Não sobram dúvidas de que decisões de tamanha magnitude não podem estar dependentes de juízos casuísticos, de oportunidade política e casuais, dependentes da pressão da opinião pública dispersa. Embora a palavra possa soar exagerada, o que temos neste modelo é um processo totalmente arbitrário de funcionamento do Estado indemnizador, o qual decide assumir as suas responsabilidades em determinadas constelações de casos, mas que se dispensa de o fazer em casos análogos ou até em casos em que a sua responsabilidade se revela mais evidente. A catástrofe sanitária que o país está a viver nestes dias torna inevitável a pergunta: com que fundamento de justiça é que o mesmo Estado que se responsabilizou pelas mortes dos incêndios de 2017 poderá agora desresponsabilizar-se por tantas mortes evitáveis que acontecem a cada hora nos hospitais ou à porta deles? Acaso poderá considerar-se menor a responsabilidade do Estado perante a segunda vaga da pandemia – em que os responsáveis se demitiram de atuar preventivamente quando sabiam há muitos meses o que havia a fazer –, do que em 2017, em que os incêndios deflagraram sem aviso prévio, num instante, e todo o desastre se concluiu em poucas horas?

Questões como essas só se colocam porque, num determinado momento, o Governo decidiu iniciar o caminho insólito de agir por impulso, sem lei e, portanto, sem critérios previamente estabelecidos para tomar decisões numa matéria tão delicada como a assunção unilateral de responsabilidade do Estado por determinados danos. Pelo menos no caso dos incêndios, fica a dúvida séria sobre se as indemnizações atribuídas são a expressão de um Estado indemnizador por danos da sua responsabilidade ou, em vez disso, de um Estado segurador que assume um dever de indemnizar danos causados por caso fortuito, para resolver um problema político e não tanto jurídico.

Além das considerações anteriores, o modelo seguido ainda comporta um outro problema: nas concretas decisões em que reconhece a responsabilidade do Estado, o Governo alude a um direito de regresso do Estado sobre os agentes responsáveis pelos danos, a exercer quando a responsabilidade destes vier a ser apurada. Ora, mais uma vez, a falta de lei é um fator crítico: embora ilegalmente, o Governo até pode reconhecer unilateralmente a sua responsabilidade; o que, para além da falta de lei, já não tem cabimento jurídico é que, com a mesma leveza, atribua a si mesmo direitos de regresso para se reembolsar de indemnizações que, por sua iniciativa, decidiu pagar.

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