Na sequência de comportamentos adotados no decurso da sessão da AR de receção ao Presidente do Brasil, tem sido admitida a hipótese de os deputados serem expulsos das sessões pelo Presidente da AR; a ordem de expulsão seria uma medida de reposição da ordem, necessária em face de condutas reveladoras de falta de decoro ou de cortesia institucional ou da prática de atos desordeiros e de ofensa a regras elementares de urbanidade ou de desrespeito pela dignidade da AR.

De acordo com esse entendimento, a hipótese de decretamento imediato da expulsão de deputados desordeiros teria o seu fundamento jurídico num preceito do Regimento da AR que confere ao Presidente da AR a competência para “manter a ordem e a disciplina, bem como a segurança da Assembleia, podendo para isso requisitar e usar os meios necessários e tomar as medidas que entender convenientes”.

Creio que neste entendimento haverá alguma confusão quanto ao alcance da referida competência do Presidente da AR, que, seguramente, não abrange o poder de expulsar deputados. Com efeito, a responsabilidade por “manter a ordem e a disciplina” inscreve-se num poder de polícia confiado aos presidentes de órgãos colegiais que reúnem em espaços abertos ao público: “polícia da sessão” é a designação comum deste poder, que a legislação atribui, por exemplo, aos presidentes das assembleias municipais, aos quais cabe “manter a disciplina das sessões”. Trata-se de um poder que visa assegurar a boa ordem no local onde decorre uma reunião pública, exercido sobre qualquer pessoa que aí se encontre e que perturbe o andamento da reunião entre os membros de um órgão público: por natureza, está aí em pauta um poder sobre pessoas estranhas ao órgão, cujo fundamento reside em preservar as condições de realização da reunião (entre os membros do órgão). É no exercício deste poder, e ao abrigo do preceito regimental há pouco citado, que o Presidente da AR pode ordenar a evacuação das tribunas ou a expulsão de pessoa ou pessoas identificadas que ali se encontram.

De natureza diferente da polícia das sessões apresenta-se o poder disciplinar a que estão submetidos os membros de um órgão colegial – como os deputados da AR – no cenário de violação de deveres disciplinares.

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Os deputados da AR têm direitos e têm deveres; para o caso de incumprimento de deveres, a lei (ou o regimento do órgão) pode estabelecer efeitos materializados na imposição de medidas disciplinares no quadro de um regime disciplinar estabelecido.

Precisamente a expulsão de deputados é uma medida prevista em vários ordenamentos jurídicos estrangeiros, aplicável no âmbito de um regime disciplinar que, em obediência a um incontornável princípio de tipicidade, defina os factos ou condutas qualificáveis como infrações disciplinares (por exemplo, “proferir palavras ofensivas de pessoas ou instituições”; “adotar conduta desordeira”), indique as sanções aplicáveis a esses factos, no respeito pelo princípio da proporcionalidade (por exemplo, retirada da palavra; expulsão da sessão; proibição temporária da participação nas sessões; suspensão temporária da condição de deputado; multas ou perdas de vencimento) e determine os órgãos competentes para aplicar as medidas disciplinares (por exemplo, presidente do parlamento, comissão disciplinar, plenário), no respeito do princípio da competência.

Sucede que, entre nós, não existe, nem em lei, nem no regimento da AR, qualquer regime disciplinar parlamentar que preveja a possibilidade de expulsão de um deputado, quer seja pelo Presidente da AR ou por outra instância. Tanto quanto se pode apurar, as únicas “medidas disciplinares” que o Presidente da AR tem competência para aplicar são a advertência e a retirada da palavra, em ambos os casos quando o deputado “se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo”. Fora deste quadro estrito, e no plano específico das relações com os demais deputados, o Presidente da AR é um primus inter pares, que, compreensivelmente, não dispõe de um poder disciplinar geral e indeterminado – em cujo âmbito estivesse autorizado a adotar as penas disciplinares que entendesse convenientes! –, nem, em geral, se encontra investido da competência para a adoção de quaisquer medidas de manifestação de supremacia jurídica sobre os deputados.