‘O tafetá’, observou o costureiro, ‘é um material muito ingrato.’ Está bem entendido a queixar-se do tafetá; mas não diz simplesmente que o tafetá é um tecido difícil de trabalhar; e muito menos confessa que não consegue trabalhá-lo. Chama ao tafetá ingrato, e chama ingratidão às dificuldades que tem com ele. Em três palavras, o costureiro culpa o tafetá; descreve o seu material como descreveria uma pessoa, capaz de sentimentos, e capaz de conspirar contra si.

Também nos queixamos assim de inúmeros animais, e também lhes atribuímos ingratidão. Numa fábula muito antiga um homem encontra uma serpente cheia de frio e aquece-a junto ao corpo; a serpente morde-o. O homem pergunta-lhe porque o fez. A serpente responde-lhe com outra pergunta: ‘Não sabes da inimizade que existe entre o meu género e o género humano?’ Mas esta serpente é capaz de explicar a sua ingratidão apenas porque se trata de uma fábula; as outras serpentes são mudas como o tafetá.

Quando se é ingrato é-se ingrato a respeito de alguma coisa ou por alguma razão. Os nossos sentimentos de ingratidão, ou as nossas explicações desses sentimentos, referem-se a causas; e essas causas coincidem normalmente com as razões ou os motivos de terceiros. Ora o tafetá e a serpente não têm razões ou motivos: não podem por isso ser ingratos, bondosos, ou sonsos. Se pudessem ser ingratos estar-lhes-iam abertas as possibilidades emocionais características dos primatas superiores; e teríamos de refazer a nossa biologia, a nossa psicologia e o nosso direito.

Parece assim que só faz sentido queixarmo-nos de animais como nós, isto é, queixarmo-nos daquilo a que comummente chamamos as outras pessoas. Não é naturalmente verdade que só outras pessoas nos possam dar razões de queixa e motivos de aborrecimento; mas as outras pessoas, ao contrário do tafetá, ou das serpentes, conseguem em princípio explicar-nos as causas daquilo que entendemos como a sua ingratidão. Não são em nenhum sentido razoável uma cobra ou um tecido. O que une tecidos, cobras, e as outras pessoas não é aquilo que eles são, porque são coisas muito diferentes: é antes a maneira como os culpamos de coisas que nos aconteceram; a maneira como, ao vê-los como causas dos nossos dissabores, lhes atribuímos razões para no-los terem causado.

Trata-se de um exagero que cultivamos com aplicação. É verdade que tudo neste mundo pode ser causa de dissabores para nós. No entanto só animais como nós nos podem ofender de propósito; só animais como nós podem ter razões para nos ofender; e só quem pode ter razões pode ser ingrato. Segue-se que não adianta muito queixarmo-nos das ofensas causadas por coisas que não nos podem ofender, isto é, que não podem querer ofender-nos. Não adianta por isso queixarmo-nos da ingratidão do mundo em geral, mesmo com razão. Como o mundo não pode ser ingrato, não pode perceber as nossas queixas.

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