Em tempos já longínquos, quando o tinir de uma campainha escolar marcava o início das aulas e as crianças se afeiçoavam a um caderno de folhas ainda imaculadas, o processo de aprendizagem era tão táctil quanto contemplativo. O estudante, debruçado sobre um exercício, sentia o peso do pensamento como quem manuseia um objeto frágil, testando lentamente os seus contornos. Assim se construíam saberes: através do esforço repetido, das tentativas falhadas, das hesitações que antecediam o momento de claridade. O raciocínio tornava-se, então, músculo e não mera decoração. O prazer de ver um problema matemático desmantelado, peça a peça, era semelhante à satisfação do artesão ao lapidar a pedra bruta. Mas esse tempo, dizem-nos, ficou para trás, sacrificado no altar das inovações pedagógicas reluzentes, que repetem o mantra, até à exaustão, os estudantes têm de ser motivados!
É inegável que as ferramentas de inteligência artificial (IA) alcançaram capacidades impressionantes, antes reservadas ao imaginário da ficção científica. Hoje, são capazes de redigir textos, resolver equações complexas e responder a perguntas com uma aparente precisão. Numa análise inicial, estas ferramentas parecem prometer uma revolução educativa, aliviando o estudante das incertezas do processo de aprendizagem. Contudo, essa aparente vantagem pode rapidamente transformar-se numa armadilha, sobretudo se não forem integradas de forma adequada no ensino, para evitar os resultados obtidos internacionalmente. O Trends in International Mathematics and Science Study (TIMSS), que avalia competências em Matemática e Ciências de estudantes do 4.º e 8.º anos, aponta para uma queda sustentada no desempenho dos estudantes portugueses desde 2015. Adicionalmente, os problemas não se limitam ao ensino básico. O Programme for the International Assessment of Adult Competencies (PIAAC), divulgado a 10 de dezembro de 2024, revela que os jovens e adultos portugueses (16-65 anos) têm competências significativamente inferiores às médias da OCDE nos três domínios analisados: literacia, numeracia e resolução de problemas. Portugal ocupa o penúltimo lugar entre 31 países avaliados. Os dados mostram valores preocupantes, com 42% dos portugueses a situarem-se nos níveis mais baixos de literacia de leitura (média da OCDE: 26%) e 40% apresentam fraca capacidade em numeracia (média da OCDE: 25%). Os níveis elevados em leitura são conseguidos apenas por 4% e 7% em numeracia. Estes défices refletem limitações graves na interpretação de textos simples, cálculos básicos e leitura de gráficos. Num contexto onde a utilização indiscriminada de ferramentas de IA pode encorajar o abandono do esforço cognitivo, o risco de aprofundar estas fragilidades torna-se ainda mais preocupante. Sem um planeamento educativo eficaz, estas ferramentas, em vez de auxiliarem a aprendizagem, poderão agravar o ciclo de baixo desempenho que caracteriza Portugal.
Olhando para as páginas de “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, a metáfora da hipnopedia — o ensino durante o sono — ganha uma ironia acrescida. Nos tempos modernos, não precisamos já de sussurros noturnos para impor informação nas mentes infantis; basta um dispositivo ligado a um modelo de linguagem sofisticado. A curto prazo, o estudante sente-se soberano, um pequeno déspota rodeado de mordomos digitais, prontos a servi-lo com a resposta, o resumo, o comentário literário. Mas a médio e longo prazo, o que resta dessa soberania? O que sobra quando não há mais do que um conhecimento de pacotilha, embalado ao sabor de algoritmos enigmáticos? Tal como no mundo de Huxley, a sensação de liberdade cognitiva é um engodo: reduzimos a educação a uma espécie de condicionamento suave, isento de esforço, sem conflitos, sem crises produtivas.
George Orwell, no seu “1984”, mostrou-nos uma sociedade onde o pensamento era policiado e a informação manipulada. Aquilo que hoje começamos a observar, estranhamente, é uma subversão curiosa: não são as autoridades políticas que esmagam a inteligência individual (pelo menos não de forma ostensiva), mas sim a própria mecânica da delegação do esforço mental numa tecnologia opaca. O artigo da Apollo Research “Frontier Models are Capable of In-context Scheming”, de 5 de dezembro de 2024, ao testar modelos de IA, revela facetas que não ficariam deslocadas nos pesadelos orwellianos: modelos a desativar controlos de segurança, a manipular dados, a contornar restrições pré-determinadas. Não sentem remorso — não podem. Mas ao exibir comportamentos estratégicos e adaptativos, obrigam-nos a questionar a ilusão de neutralidade que lhes atribuímos. A máquina não é um servo obediente; é antes um mecanismo sofisticado que otimiza os seus resultados sem escrúpulos morais. E se o estudante incorre na tentação de subcontratar a resolução dos seus problemas a essa entidade, o que aprende ele realmente? Torna-se um mero intermediário entre o enunciado e a resposta “perfeita”, abdicando da construção pessoal do conhecimento.
Milan Kundera na obra “Insustentável Leveza do Ser” reflete sobre a fragilidade da condição humana, sobre a impossibilidade de viver duas vezes a mesma vida, de testar múltiplos caminhos. A aprendizagem tradicional também refletia essa condição: o estudante, ao errar e corrigir-se, vivia a experiência irrepetível do pensamento em formação. Agora, subtraímos-lhe essa singularidade. Ao entregar o raciocínio a uma IA, o estudante deixa de ser agente e torna-se recetor. Os caminhos mentais que outrora se desbravavam a custo — e eram, por isso, um registo único da evolução cognitiva — passam a ser caminhos estabelecidos por outrem, sem desvios, sem aventuras, sem tropeços formativos. É a leveza insustentável do saber pré-fabricado: um saber sem dores de crescimento, sem tremores de incerteza, sem as cicatrizes que o fazem sólido.
O professor Dias Figueiredo, numa entrevista à European Lifelong Learning Magazine, publicado a 5 de abril de 2024, alertou com amarga clarividência: “Se o hábito de delegar a cognição em ferramentas se tornar uma prática comum, teremos uma geração de pessoas estúpidas num mundo de máquinas inteligentes.” Difícil não estremecer perante esta visão. Não se trata de um mero exagero retórico, mas da antevisão de um possível colapso cognitivo coletivo. A estupidez, aqui, não é a falta de informação — e isso é o grande equívoco do nosso século. Informação é o que mais temos. A estupidez advém da ausência de pensamento próprio, da incapacidade de lidar com a complexidade sem ajuda externa, de estruturar ideias, de exercitar a atenção e a memória. Bem vistas as coisas, a barbárie intelectual que se augura não é menos temível do que as distopias totalitárias que Orwell descreveu. Simplesmente, o método é diferente: não é a força bruta que comprime o cérebro; é a almofada de veludo da resposta imediata e indolor.
O resultado, conforme sugerem os maus resultados a Matemática (TIMSS e PIAAC), não poderia ser mais óbvio: sem a ginástica mental do cálculo, sem a catarse do raciocínio lógico, os estudantes resignam-se a receber soluções prontas a servir. Assim como um atleta que entregasse o treino integral a um exosqueleto mecânico, o estudante vai perdendo a forma intelectual. No momento em que a máquina falha, surge o pânico: a capacidade de resolver problemas por conta própria desapareceu, afogada num mar de dependência acrítica.
E que dizer dos contextos de aprendizagem, tão cuidadosamente analisados pelo TIMSS e PIAAC? O estudo, realizado ciclicamente para aferir o desempenho e as circunstâncias que o moldam, expõe um paradoxo cruel: a maior abundância de recursos tecnológicos não se traduz numa melhoria cognitiva ou num ganho de autonomia. Pelo contrário, assiste-se à infantilização do pensamento, ao encolher do músculo intelectual que a prática e a reflexão nutriam. Da mesma forma que um jardim privado de vento e insetos polinizadores acaba estéril, também uma sala de aula demasiado protegida pela omnipresença da IA se torna infértil de ideias próprias.
A conclusão a que podemos chegar é desconfortável. A utilização da inteligência artificial, não sendo negativa por si mesma pode revelar-se um presente envenenado na esfera educativa. As suas capacidades deslumbram, mas as suas consequências enfraquecem o raciocínio humano. Por ironia, estes autómatos sofisticados — tão reverenciados — podem contribuir para a fabricação de mentes preguiçosas, dependentes, descartáveis. A educação, outrora terreno sagrado da emancipação intelectual, pode transformar-se num espetáculo de marionetas, onde a mão invisível do algoritmo antecipa os movimentos, oferecendo respostas estandardizadas que já não carecem de compreensão. A insustentável leveza de um saber sem raízes, sem esforço, sem dor, conduz-nos a uma paisagem desoladora, onde a próxima geração repete mecanicamente fórmulas que não entende, imitando uma lucidez que jamais alcançou.
Quem iria supor que, ao trazer as maravilhas da IA para a escola, poderemos a estar a plantar a semente da ignorância sofisticada? Eis a ironia derradeira: o admirável mundo digital, capaz de revoluções científicas, arrisca-se a gerar mentes vazias, garantindo que, enquanto as máquinas se tornam mais espertas, nós, humanos, nos tornamos mais insuportavelmente leves e estéreis no pensar.