Michael J. Sandel, num livro de 2009 (Justice, Whats the right thing to do?, Farrar, Straus and Giroux), fala-nos dos sentimentos irracionais – como a raiva – que se mostram em situações de aumentos exponenciais de preços  de determinados bens, face às condições de acesso aos mesmos. E refere que não será através dessa raiva – face a um sentimento de injustiça — que as coisas vão melhorar. Por outro lado, menciona o abuso, que representa a ganância daqueles que usam a sua liberdade para, quando podem, praticarem preços especulativos.

A raiva dos que se veem privados de um bem essencial (habitação, alimentos, cuidados de saúde, por exemplo) e a liberdade do exercício da ganância de vendedores que querem ganhar mais a qualquer preço, são sentimentos relativos a uma ordem moral. Como considerar esta ordem moral em relação ao Direito e como adequar o Direito na relação com a Justiça para o caso concreto?

Há vários parâmetros valorativos para a modelação do Direito face a uma ideia de Justiça. Entre eles, a ideia de Bem (que implica certos mecanismos de proteção das pessoas, limitando algumas liberdades) e a ideia de Liberdade (que valoriza a autonomia dos indivíduos, em detrimento de certos bens). Como equilibrar a conceção de um Direito que se orienta, essencialmente, pela ideia de Virtude, de Bem (Estado Social), e de um Direito que se orienta mais pela ideia de Liberdade (Estado Liberal)?

Ao equacionar esta pergunta, somos colocados face aos problemas da objetividade e da subjetividade. E face à necessidade de clarificação, quem tem o poder de definir o que é o Bem e o Mal, a Liberdade e a Opressão?

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Se fizermos uma genealogia histórica dos conceitos e de quem os define, veremos que variam, de acordo com o Tempo e o Lugar. A fonte do poder pode ser o Rei, o Clero, o Parlamento, a Oligarquia, a Aristocracia, a Comunidade. A fonte do poder pode ser difusa, distribuída ou concentrada.

Quer isto dizer que tudo é subjetivo e discutível? Que não há valores comuns estáveis?

Talvez não. Talvez seja possível, apesar de tudo, construir uma ideia de Justiça próxima de diferentes culturas e formas de Poder, uma ideia que conjugue valores como Respeito, Cuidado, Confiança. Uma ideia que consiga ponderar os interesses em presença e através de uma organização normativa capaz, do comportamento competente dos aplicadores da lei e na resolução célere de casos concretos.

O monopólio do Direito e da sua correlação com a Justiça praticada pelo Estado, procura ser, nas democracias, e através das políticas da Justiça, a forma de enquadrar parâmetros como a defesa da Liberdade e a proteção de Bens.  Mas este monopólio não é uma garantia de aplicação “mais justa” da lei, ou de administração “mais virtuosa”, da Justiça. Tanto o Direito estatal pode ser injusto, como um Direito justo pode ser desvirtuado pela forma como é aplicado (mais que não seja, pela demora na sua aplicação, ou, no pior dos casos, pela prática de sentenças injustas).

Estes constrangimentos não são, necessariamente, valorizadores de, em alternativa, se preferirem sistemas de Justiça Privada. Os sistemas de justiça privada, sendo anteriores aos modelos estatais – como as sociedades europeias medievais — não ofereciam maiores garantias de proteção dos indivíduos (divididas entre Clero Nobreza e Povo). A pertença a cada estamento (categoria) ou, dentro dele, a sub-estamentos, levaria a diferente tratamento e diferente aplicação da lei. Condenações ou graças arbitrárias do suserano, seriam sempre possíveis, no quadro do seu poder absoluto.

Noutros tipos de comunidades, desde as nómadas às sedentárias, várias estâncias de poder, nomeadamente costumeiro, promoveram mecanismos de decisão mais ou menos arbitrários.

Atualmente, o monopólio do poder judicial pelo Estado – essencial para a segurança e estabilidade social — é desafiado de diversas formas.

Numa sociedade cada vez mais atomizada e com transformação rápida das dinâmicas de interação, a solidez do sistema de justiça é crítica, para lidar com este processo, encontrando formas de atualização e resposta adequadas ao tempo vivido.

Neste tempo vivido, os valores da Justiça já não podem tomar em conta, exclusivamente, o ser humano.

Agora, temos de enquadrar, juridicamente, as inteligências não humanas (como a Inteligência Artificial), a exploração do Espaço, a regulação do espaço digital.

Ao mesmo tempo, os conhecimentos atuais, implicam que os sistemas normativos considerem a proteção da Natureza na Terra, seja no que se refere aos recursos naturais, aos fundos marinhos, seja no que respeita às diversas formas de vida, como a vida animal e vegetal.

São valores a proteger para lá do ser humano, na consideração de que temos de enquadrar normativamente outras formas de inteligência e que o nosso planeta é casa de múltiplas espécies (também é o planeta deles), não tendo nós o direito de as destruir, tantas vezes, por razões fúteis.

Se os sistemas estatais ou da comunidade internacional interestadual não forem capazes de gerar uma adequação dos sistemas normativos à contemporaneidade, haverá quem procure desafiar o seu papel, propondo ou mesmo exercendo, novas formas de “justiça”, de foro privado, cobrindo desde situações menores, a outras de maior dimensão, como podem ser os contratos leoninos de adesão a serviços de tantas grandes empresas.

Apesar de tudo, temos assistido a alguns atos corajosos para contrariar estas formas de privatização da Justiça, de que são exemplo a regulação dos serviços digitais pela Comissão Europeia, ou as determinações da justiça brasileira face ao X (antigo Twitter).

Vivemos momentos desafiantes, em muitos domínios. A sustentação dos regimes democráticos passa, necessariamente, por sistemas de Justiça sólidos.

A atualização normativa, a educação dos magistrados, a consciencialização e adesão cidadã à essência de um modelo atual de pacto social no campo da Justiça, assim como a utilização proporcional dos meios coercivos por parte do Estado, são essenciais.