A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais de qualquer sociedade democrática e, no caso português, não é uma exceção. É o direito de manifestar ideias, opiniões e crenças, sem medo de censura e/ou consequências. Contudo, nos dias de hoje, este é um direito que está sob ameaça constante, o que exige uma maior reflexão da nossa parte.

Ao nível histórico, a liberdade de expressão tem sido o motor para o progresso social em várias esferas. John Stuart Mill, no seu clássico Sobre a Liberdade, argumentava que a liberdade de expressão é fundamental para a procura de uma verdade absoluta. Sem este direito, a sociedade correria o risco de estagnação e de se tornar vítima de dogmas inquestionáveis.

Atualmente, a liberdade de expressão enfrenta novos desafios, em Portugal e no mundo. Com a expansão das TIC, qualquer pessoa com acesso à Internet poderá expressar a sua opinião para um público global. É certo que todos temos liberdade para nos exprimirmos, mas essa liberdade termina quando colocamos em causa a liberdade do outro. Assim, é necessário reconhecer que a liberdade de expressão não é sinónimo de disseminação do ódio e da violência, devendo a responsabilidade de nos expressarmos ser acompanhada com um compromisso com a verdade e respeito pelos direitos dos outros.

A contemporaneidade é muito volátil e as sensibilidades sociais acompanham as transformações que ocorrem na realidade. Por isso mesmo, o que outrora era considerado normal e natural hoje pode revelar-se ofensivo se atentar contra alguma dimensão de um dado sujeito e inviabilizar de algum modo a sua dignidade enquanto ser humano. Contudo, não se trata de realizar um policiamento agressivo à linguagem, de forma a cercear todos os discursos que sigam contra as opiniões mais numerosas ou o politicamente correto. O saneamento da linguagem e a cultura de cancelamento que hoje se pratica mais pela esquerda política são o inverso da censura levada a cabo no passado pela direita – ou, simplesmente, um novo formato da mesma – e não permite que as pessoas se sintam confortáveis para exprimirem aquilo que pensam verdadeiramente, sob pena de perderem oportunidades diversas, o que prejudicará a sua intenção de franqueza.

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Todavia, franqueza não é sinónimo de rudeza e, em se tratando de pessoas, entre dois direitos conflituantes — liberdade de expressão vs igualdade — devemos primar pelo segundo princípio, visto que é ele o garante do primeiro. Afinal, ninguém gosta de ser ofendido, e muito menos alguém pode ser ostracizado por ter determinada cor de pele, orientação sexual ou crença religiosa, por exemplo. Fazê-lo é simplesmente crime, ação punível pela lei, conforme consensualizado e legitimado no documento que nos atribui a nossa cidadania – a Constituição, neste caso da República Portuguesa. Se não devemos vulgarizar a identificação do discurso de ódio, afirmando que a mínima coisa é xenofobia, racismo, homofobia, misoginia, gordofobia ou idadismo, também não devemos, a partir do nosso silêncio, ser os perpetuadores da “banalidade do mal”, como Hannah Arendt tão chocantemente reconheceu naquele tribunal israelita perante agentes nazis que se desculpavam de todas as suas ações com base no seguimento incontestado das regras do seu ditador.

Sendo diretos, a nossa postura é, no essencial, a mesma defendida por Jean-Jacques Rousseau, ainda no século XVIII, no seu O Contrato Social. Vivermos na alçada de um Estado é admitirmos que, para obtermos o seu apoio em variadíssimas áreas (saúde, educação, habitação, defesa, proteção económica, etc.), precisamos de abdicar de algumas das nossas vontades mais animalescas. Mas esta é também uma posição libertadora e emancipadora para o próprio indivíduo, que deixa de matar e ser morto (o homem deixa de ser o lobo do homem, adaptando a frase do filósofo Thomas Hobbes) para confiar as armas em quem se torna apto a protegê-lo, assim como autoriza não poder dizer tudo o que lhe apetece para ser respeitado, reconfigurando-se a liberdade de expressão para se obter um direito moderado, disponível de forma equilibrada para todos os cidadãos.

Poderão os leitores perguntar-se porque estamos a invocar vários autores do passado quando sucederam casos recentes sobre os limites das nossas expressões em Portugal. Ora, precisamente porque este é um assunto sempre inacabado enquanto descobrimos a maneira mais harmoniosa de convivermos em sociedade é que nos estamos a munir do conhecimento teórico-científico produzido há muito. Pois foi naquela altura, com tantas desigualdades ainda em jogo, que se estabeleceram os pilares para aquilo que devem ser a nossa preocupação e o nosso compromisso com a autêntica liberdade de expressão – algo que nos deveria conduzir a uma reflexão profunda, se realmente consideramos a atualidade mais justa e desenvolvida e pretendemos fazer-lhe jus.

Não queiramos regressar às trevas quando aqueles pensadores já nos tentavam mostrar a luz…