A ideia de que a união faz a força é tão válida quanto a de que um erro numa população unida pode tornar-se sistémico e destrui-la irremediavelmente. Se a primeira é naturalmente apelativa, a segunda é particularmente repulsiva e raramente alguém admite que pode estar a ser arrastado para um vórtex de autodestruição colectiva. Para ilustrar este aforismo, ocorre-me sempre uma velha imagem que tenho dos gnus na savana: tomados de medo pela perseguição de um pequeno predador, irrompem numa debandada frenética em direcção a um precipício, saltando aos magotes para o vazio e para a morte certa.
Vem isto a propósito dos dados revelados recentemente pelo World Bank, que demonstram o estrondoso fracasso global na resposta à pandemia. De acordo com o relatório anual Poverty and Shared Prosperity, o mundo em 2020 tem aproximadamente mais 100 milhões de pessoas em pobreza extrema do que em 2019 e a estimativa aponta para um crescimento até 150 milhões em 2021. Quem quiser duvidar que a suspensão da vida económica e social imposta por governantes de todo o mundo na reacção à pandemia é a causa directa deste flagelo, deverá começar por explicar o súbito aumento da pobreza em 2020, depois de esta ter descido consistentemente ao longo dos últimos 20 anos. Não há argumento sério que possa contrariar esta correlação e, seguramente, não haverá remédio ou vacina que salve da fome e da miséria tantos milhões de pessoas que viram os seus meios de subsistência arrasados por decisões políticas, cujo único racional parece ter sido a irracionalidade do medo e o desnorte.
Apesar disto, que certamente são minudências insignificantes na cabeça de muita gente, o massacre continua e a segunda vaga de restrições e obrigações, que assentam mais em palpites do que em evidências, está em marcha para trilhar o caminho em direcção ao precipício. Para justificar este experimentalismo obscurantista, inúmeros decisores e comentadores argumentam que a ciência falhou na entrega de soluções definitivas, incorrendo, eles, na falácia de que a ciência tem uma função utilitária na resposta imediata às necessidades e expectativas da sociedade. É uma falácia, não porque o conhecimento produzido não possa vir a ter aplicações úteis, mas porque os valores inerentes às “necessidades e expectativas da sociedade” são um campo de batalha ideológico onde os interesses políticos cedem frequentemente à tentação de profanar a credibilidade do conhecimento científico, transformando-o em narrativa política e ideológica.
Quem conhece o que escrevem e dizem alguns dos mais experientes conselheiros científicos ocidentais, sabe da crescente apreensão que existe em torno da falta de transparência nos processos de decisão e da instrumentalização política do conhecimento. Na actual crise sanitária, o epicentro dos interesses políticos está na Organização Mundial de Saúde que, preocupantemente, não tem conseguido resistir à vandalização da sua credibilidade científica, tendo-se tornado numa trincheira de combate entre a China e os Estados Unidos da América. Foi na clara desorientação das comunicações externas da OMS, entre Janeiro e Fevereiro, que se estabeleceram as condições iniciais do erro sistémico que deu origem à debandada mundial: num curto espaço de tempo a OMS disse tudo e o seu contrário, desde a desvalorização do vírus até à certeza de que se tratava de uma ameaça global arrasadora. A insegurança e o medo, estampados na cara, nas palavras e no desnorte do director-geral da OMS, contaminaram governos nacionais de todo o mundo, em particular nos países que não dispunham de estruturas de aconselhamento científico independente e competente para travar o desastre. É claro que não se pode falar do contágio do medo sem referir o papel fundamental que a imprensa tem neste processo. A imprensa, que em Fevereiro não se coibiu de exibir, vezes sem conta, imagens falsas de mortos, vítimas do vírus, nas ruas de Wuhan, é a mesma imprensa que hoje detém a presunção da verdade nos polígrafos e afins, que chegam a cometer a arrogância de refutar ciência consolidada ao longo de décadas com exercícios de retórica ordinária.
A profanação do conhecimento científico na esfera pública não é nova nem surpreendente. O que surpreende (ou talvez não) é o silêncio e a submissão das instituições científicas perante este cenário, como se já estivessem rendidas ao assalto dos interesses políticos. Se a ciência falhou em algum ponto na resposta à pandemia, foi na incapacidade de defender o seu produto – o conhecimento – dos abusos que tem sofrido sistematicamente em disputas políticas. O flagelo só vai terminar no dia em que as instituições científicas quiserem tomar a iniciativa de se defenderem e de garantirem independência e autonomia. Isto não significa isolar a ciência do resto da sociedade nem cortar relações com a política, antes pelo contrário, só através da abertura e, acima de tudo, da criação de mecanismos de transparência é que é possível recuperar a credibilidade. Enquanto nada disto for feito, o que há não é promissor.
Um dia, quando esta pandemia passar, as contas finais vão ser feitas ao impacto das políticas que foram impostas em todo o mundo sem qualquer base racional. Nessa altura, vai impor-se a pergunta: quem são os responsáveis? Posso adiantar-vos já a resposta: ninguém, tal como nas manadas de gnus. Vivemos uma crise da ideia de responsabilidade. Na política actual, a responsabilidade parece ter sido reduzida ao compromisso da responsividade, ou seja, de dar resposta aos problemas, bem ou mal, não interessa, mas é sempre preciso fazer alguma coisa. É assim que actuam os novos responsáveis. A função de prestação de contas, de responder pelos actos e decisões, de dar a cara, desapareceu – talvez por isso, nas sociedades onde a ideia de responsabilidade está em crise, tanta gente se sinta confortável de cara tapada.O que parece estar na origem desta mutação de sentido é a colectivização de tudo. Não é raro ouvirmos na retórica política que todos somos responsáveis por isto, e todos somos responsáveis por aquilo. O indivíduo desapareceu do discurso político. Agora, diz-se que a responsabilidade é de todos, mas sabemos bem que a responsabilidade a dividir por todos dá muito pouca a cada um.