A Maria chegou na semana passada. Tem 26 anos. Nascida e criada em Kyiv. Nunca pensou sair do país. Até recentemente.

A sua família planeia ficar na capital mas ela tem medo. Cada dia bombas e mais bombas. Os tanques vão-se aproximando da capital e o fim não parece estar à vista.

“Que se lixe, vou-me embora até as coisas acalmarem… Anda Remi!”

O Remi é um pastor alemão. Embora seja boa companhia, arranjar estadia com um cão num asilo para refugiados é tarefa difícil. A maioria dos asilos recusa-a ou diz-lhe para ir para outro sítio menos sobrelotado.

O seu amigo Nikolai (Nick), também Ucraniano a viver na Alemanha, diz-lhe que não pode hospedar o cão, que o senhorio não deixa, mas convence-a a ir para a Alemanha, onde estão a oferecer ajuda aos refugiados. Após uma longa viagem, lá se conhecem na vida real. O seu contacto tinha sido apenas virtual, através de jogos online.

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“Foi preciso começar uma guerra para nos encontrarmos.”

No dia 1 Janeiro de 2017 decido fazer uma típica resolução de Ano Novo: aprender russo, a minha oitava língua. Ao longo dos anos tento entrar em contacto com a cultura e faço vários amigos.

Esses amigos, cinco anos depois, ao começar a guerra na Ucrânia, decidem converter-se em voluntários e ajudar os refugiados Ucranianos. Eles dizem-me que há uma refugiada chamada Maria que tem um cão e não tem sítio para ficar. É apenas um dos centenas de pedidos que chegam às organizações humanitárias e que leio constantemente nas redes sociais.

Trocamos mensagens (em russo) e digo-lhe: “Normalmente tenho um quarto para hóspedes mas de momento está ocupado por um colega americano que está de visita ao país. Ele é simpático mas fala apenas inglês.”

“O meu inglês não é assim tão bom mas vou tentar.”

Qual não é o meu espanto quando, ao chegarmos a casa, ela começa a falar inglês fluente com o americano.

“Pensava que o teu inglês não era bom.”

Às vezes esqueço-me de umas palavras… Mas é tão fixe estar a falar com falante nativo da língua! Ele soa mesmo como nos filmes!”

Afinal o inglês que não era suficientemente bom era o meu. Ficamos pelo russo então. Ela parece não se importar de me corrigir constantemente os tempos verbais e as declinações nominais.

“Francisco, tenho um pedido.”

“Diz.”

“O Nick vai-me emprestar um computador velho que ele tem, incluindo um rato e teclado. Apenas preciso de um monitor para poder jogar.”

Recordo-me que há várias organizações a angariar produtos de primeira necessidade. Mas duvido que um monitor para o computador entre nessa categoria. De repente lembro-me que o americano tem um monitor que não está a usar. Uma feliz coincidência.

“Ah, e preciso de um tapete para o rato!”

“Isso já não tenho.”

“Vamos comprar, eu pago!”

Tendo resolvido as coisas importantes, decidimos ir finalmente ao supermercado atestar o frigorífico. A minha mãe neste ponto decide interromper a história: “Então a moça chega e tu não tens nada para lhe dar?”

“Não vou comprar um monte de coisas sem saber do que ela gosta. Deixa lá continuar a história.”

No supermercado, a Maria pergunta-me: “Precisas de pagar para usar o carrinho aqui?”

“Como assim? Metes a moeda no carrinho mas depois recupera-la.”

“Normalmente a gente simplesmente leva o carrinho. Não é necessário pôr uma moeda.”

“Talvez as pessoas em Kyiv sejam mais honestas que aqui.”

Outro aspecto impressiona a Maria: Garrafas de coca-cola de vários sabores.

“Não compres a de cereja que não presta.” Advirto.

“Ok, mas a de baunilha tenho que levar! E levo duas!”

Está felicíssima.

Talvez este não seja o momento mais adequado para educá-la sobre os perigos do excesso de açúcar. Ninguém gosta de um desmancha-prazeres.

“E há tantos chocolates… e tipos de bolachas! Vou levar estas americanas que têm pepitas de chocolate. Pepitas, não! Pepitonas, porque são enormes!”

O capitalismo americano e o seu alto poder sedutivo em ação. Quem sabe… Talvez a União Soviética ainda existisse caso tivesse investido menos em ballet e música clássica e focado os seus esforços nacionais para inventar novos sabores de bebidas gaseificadas. A Maria pelo menos acha que sim.

O Remi ficou na entrada à espera mas também acho que concordaria. Para ele há um vasto sortido de opções deliciosas. “Normalmente estas coisas só se encontram em lojas específicas para produtos animais e não num supermercado genérico.” comenta a Maria.

O meu irmão decide tecer um comentário. Acha que a palavra pepitonas não existe e que não estou a traduzir correctamente do russo.

“Devias verificar isso.”

“Não verifiquei se a palavra existe. Se existir, não há problema. Se não existir, pode ser que receba um dia um prémio literário por aumentar o léxico da língua portuguesa. Quem sabe? Parece que faz sentido existir, não? Não pode haver pepitonas de coisas?”

“Estás louco.”

No dia seguinte vamos ao centro de imigração. É necessário registar a Maria junto das autoridades alemãs.

Chegámos antes da hora da abertura mas mesmo assim já vemos uma fila enorme. A Maria nota que há uma fila pequena ao lado da fila grande.

A fila pequena diz “outras nacionalidades”. A fila grande diz “apenas Ucranianos”.

Ficamo-nos pela fila grande então.

Várias horas passam. Alguns refugiados socializam, outros leem as notícias no telemóvel e outros começam a fazer download de aplicações para aprender alemão. Tudo serve para passar o tempo.

“Guten Morgen.”

Perguntam-me se a pronúncia está correcta.

Pomo-nos à conversa com um senhor alemão-russo que também está na fila.

“Estou aqui a ajudar duas famílias. São oito. Decidi com um amigo meu renovar um apartamento para eles ficarem lá a viver uns tempos. É um apartamento apertado para os oito mas é melhor do que ficarem na rua. Sem a minha ajuda a traduzir e a comunicar com os assistentes sociais seria muito difícil eles desenrascarem-se sozinhos. A burocracia alemã é complicada.”

A Maria nota que ele e outras pessoas têm fotos na mão.

“É necessário uma foto tipo passe para fazer o registo.” Diz-nos ele.

Não é um grande problema. Felizmente há uma cabine aqui perto. Digo à Maria que pode ir lá tirar uma foto enquanto espero na fila.

A Maria foi e continuamos a falar por mensagens. Ela escreve que encontrou a dita cabine mas que há uma fila grande. Temos que esperar então.

Fico a pensar na quantidade de pessoas que diariamente vai lá tirar fotos. Uma cabine a que ninguém liga nenhuma e normalmente nem sequer é usada. Tantas teorias da conspiração circulam. Quem está a ganhar dinheiro com esta guerra são os senhores donos das cabines que tiram fotografias. Talvez eles tenham pressionado o governo russo a invadir a Ucrânia. Tudo para depois os refugiados irem para outros países gastarem dinheiro em cabines que tiram fotos. Um plano perfeito. Nos policiais o culpado é sempre o personagem menos provável.

A Maria nunca mais vem.

“Que se passa? Está demorado?” Escrevo-lhe.

“As pessoas estão a demorar muito tempo. Arranjam-se e penteiam-se antes de tirarem a foto.”

“Блин!”

Lá fomos a casa do Nick buscar o tão aguardado e desejado computador. Apesar de eu e ele não vivermos longe da estação, as distâncias parecem magicamente aumentar quando se carregam coisas pesadas. Apesar disso, chegamos a casa e tudo parece funcionar às mil maravilhas.

Software instalado e zás pás trás! Começa a matança! Tanques, soldados e mísseis teleguiados aparecem e desaparecem subitamente do ecrã. Uma pequena distração e é o fim da campanha militar. A sua equipa necessita que a Maria esteja em modo de concentração plena.

Ao fim de alguns minutos ela acaba por ser morta em combate.

“Parece divertido”, digo.

“Sim, é! Matei 7 nesta ronda. Por isso até está a correr bem.”