“Encham-se as águas de seres vivos, e voem as aves sobre a terra, sob o firmamento do céu” (Génesis 1:20-22). É o que nos ensinam sobre as intenções divinas enquadradas nas escrituras da Bíblia, não é verdade? Os animais viveriam nos ecossistemas em liberdade, existindo para garantir a vida na Terra, lugar que Deus concedeu aos seres humanos. Apesar disso, é irónico constatar que os cristãos católicos se obrigam a reservar dias específicos para o não consumo de carne, como se nesses momentos a existência animal ganhasse uma sacralidade e uma consequente dignidade que não surge nos restantes dias do ano. Paradoxal, correto?
As preocupações ambientais não têm a relevância merecida no seio da Igreja, nomeadamente na Igreja Católica, e no âmbito do Cristianismo mais alargado. Existe um conservadorismo que se mantém e se reproduz, crente de que o sofrimento animal ou as alterações climáticas são temas decididos por Deus, enquanto a pobreza, por exemplo, é um problema passível de ser resolvido pelas pessoas. Ignorando a interseccionalidade das desigualdades e o modo como o ambiente pode afetar o nosso grau de religiosidade, os discursos religiosos desprezam que é a separação entre o ser humano e a natureza a criadora de várias crises naturais e humanitárias. Como defende o historiador norte-americano Lynn Townsend White Jr. (2010, p. 38), “O cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo conheceu. O cristianismo, em contraste absoluto com o paganismo antigo e as religiões da Ásia (…) não só estabeleceu um dualismo entre homem e natureza, mas também insistiu que era vontade de Deus que o homem explorasse a natureza em benefício próprio.”
Contudo, esta negligência perante a vida natural, em geral, e a vida animal, em particular, está patente também em variados membros das próprias classes política e jurídica, as quais, em contrapartida, são quem deveriam demonstrar o maior exemplo da capacidade de mudança social. É devido à sua relativa indiferença perante o que os animais sentem que outras instituições, como a religião, se consideram igualmente ausentes da necessidade de uma maior reflexão e consciencialização acerca deste tema. A eterna consideração de que os humanos estão acima dos animais é o que fornece combustão à exploração dos seus direitos e da sua dor.
Felizmente, nem tudo está perdido e existem situações que constituem móbiles de confiança na humanidade. Soubemos há poucos dias que o querido cão Boris Baguim, um patudo que não poderia acompanhar mais a sua dona por esta se ter mudado para um apartamento que não permitia animais, assinou um contrato com a Junta de Freguesia de Baguim do Monte, concelho de Gondomar, que o salvaguarda do abandono em troca da doação de amor e carinho, garantindo-lhe emprego de modo vitalício e independente da troca de partidos ou pessoas nos cargos de decisão municipais durante este tempo. À parte a jocosidade de Baguim ser um funcionário com um nível de precariedade muito abaixo de inúmeros jovens e adultos que se encontram hoje no mercado de trabalho – vários sarcásticos diriam que até os animais têm mais direitos e remuneração que as pessoas e, rapidamente, preparariam manifestações contra a valorização da vida animal, colocando em segundo plano – ele merece a nossa atenção também como um exemplo de uma tomada de posição política, por um lado, justa e empática face a um possível sofrimento que o patudo poderia vir a desenvolver noutras condições de vida e, por outro, inteligente dado que aproxima as pessoas do que acontece no município e respetiva câmara municipal, promovendo a proteção de um ser em relação ao qual, hoje, estamos mais predispostos a acarinhar.
Na contemporaneidade exige-se que as políticas públicas estejam de mãos dadas com as preocupações ambientais e a sensibilidade relativa ao sofrimento animal. A perspetiva que sempre tivemos deste foi a de uma entidade inferior, desconsiderando os seus sentimentos – tratamento que aplicámos, até, a determinados indivíduos no passado, com a “animalização” dos escravos, por exemplo. Essa postura arrogante para com outros seres que compartilham a vida na Terra e para com a própria Natureza facilmente olvida que nós mesmos somos animais, devendo à biologia uma parte deveras importante para a definição da nossa identidade etológica e social. Por isso, se desejamos que as nossas cidades sejam menos poluídas e mais eficientes, pagar menos impostos devido aos resíduos produzidos, ter rede Wi-Fi mais potente e com alcance maior ou edificar uma economia mais circular e sustentável temos de imprimir aos nossos atos uma maior atenção crítica quanto às temáticas do ambiente, em que as atitudes em relação aos animais influenciam crucialmente o nosso sucesso na chegada àqueles objetivos. Precisamos de mais Boris Baguins, desenvolvendo o campo político e demonstrando aos mais fervorosos religiosos conservadores que o seu Deus criou um mundo de animais, plantas e outros recursos para o ser humano, logo, no limite, este é que se encontra dependente das outras entidades e seria, alegadamente, “inferior” – mas que uma perspetiva ecológica não pode hierarquizar graus de dor ou valor.