Durante séculos, se alguém ousasse dizer a palavra Feliz logo seria ouvido Natal.  Todos os humanos, de há eternidades para trás e de eternidades para a frente, sabiam  que Feliz Natal era o que se passava a ouvir sempre que desertos de açúcar decidiam  aventurar-se nos mais escondidos becos de bocas alheias e costas de mãos  transformadas em praças doces desfareladas. Até os não-humanos, esses condenados a  uma humanização sempre inalcançável, vestidos de quase-renas e quase-outras-vergonhas-alheias-quaisquer sabiam que, a partir da invasão anual do açúcar, às  cavalitas da palavra feliz só poderia vir outra: Natal. Por todo o lado, para todos, por  todos e sobre todos, havia algo óbvio e certo: Feliz Natal! E tudo-tudo era feliz, de facto.  Ou quase tudo, vá. O polo norte apressava-se ao ritmo de cada prece cuspida por  crianças que durante todo o ano recebiam o que desejassem, mas nesta altura  arriscavam desafiar o horizonte do infinito que podiam ainda vir a ter. Miúdos que  roçavam a ingratidão enquanto os seus pais se desculpavam em carta registada, com  aviso de recepção, dirigida ao velho das barbas brancas que os ignorava  peremptoriamente porque os seus duendes já limpavam o suor do esforço em  cumprimento de cada prece juvenil, mesmo as retiradas à última da hora. Os duendes  deviam merecer, igualmente, Natal, mas nem um torrãozinho de açúcar alguma vez  viram. Chicoteiam-se, entre si, a cada um, com mansos pedidos amorosos que na  prática os consomem em filas de produção infinitas. Os duendes não descansam e isso é um feliz Natal também. Só não é para eles. É para as tais crianças, que esfregam as  mãos afiadas e não admitem que escreveram duas e três e quarto e cinco cartas com  nomes diferentes mas moradas iguais para tentarem o triplo das prendas. Os duendes  içam as sobrancelhas a ler os textos escritos, mas acabam a sorrir ao velho das barbas  que lhes responde: “Têm muitos irmãos, que querem, vocês?!” E, afinal, o que podiam,  mesmo, querer os duendes?! Têm o luxo de dar azo ao Natal e ainda iam querer algo  mais?! Se não fossem os duendes, quando o açúcar chegasse, se chegasse, os  humanos, em vez de feliz Natal ouviriam algo como “pobre Natal”! São uns sortudos, os  duendes! Verdadeiros braços direitos de um velho desde sempre velho, cada vez mais  velho, que assume, sozinho, eternidade fora, a generosidade do glorioso Natal. “Mas o  velho não cria Natal nenhum, quem cria o Natal somos nós, que, o ano todo, só  trabalhamos e até perdemos tempo com desejos, à ultima da hora, indesejados”, diz um  duende no meio de centenas doutros que o tentam ouvir, sabendo que o Natal acaba  acaso eles, efectivamente, parem. O fim do Natal assusta os duendes ainda que o velho das barbas brancas, por agora, se engasgue em oníricos rios de baba a cair em cima  de uma rena-bebé que lhe aquece os pés enormes, mas, sempre-sempre, durante  séculos, este, acordadíssimo, gritava: “Se o Natal acabar, é o fim do mundo!” No entanto,  os duendes já não conseguem sentir medo e dão por si, mesmo, parados. Ouvem o tal  duende-falador: “O fim deste Natal é mas é o fim do mundo desse velhada-chato!” Agora,  os duendes sentem algo diferente de medo. Sentem uma hesitação rara que os faz  recear o incerto. Uma hesitação que escorre da frase que o duende-falador atira: “Não  tenham medo de ser duendes, o Natal continuará, mas só que connosco, também, nele!”.  Mas esta foi a última frase. O velho das barbas, de ramelas ainda na ponta do nariz,  entrou pela fábrica adentro com uma carta registada na mão a dar sem efeito os  pedidos que deviam estar a ser tratados enquanto toda aquela conversa acontecia:  “Estão a ver?! O Natal do velho não é Natal sequer. O Natal dele é ser o que só ele é a  partir do que nós jamais seremos!”, largaria o duende-falador que agitava as centenas  de duendes, novamente, parados, enquanto os beiços dos humanos se enchiam de  açucares numa qualquer terra distante e, essa sim, feliz. “Uma greve de Natal”, diriam  os humanos, se soubessem, o que acontecia para lá do norte a norte do norte mais  norte ainda. Mas enganar-se-iam redondamente: não é greve. É exigência existencial!  O duende-falador, que é já duende a sério como poucos, não quer estancar nada, não  quer dividir o Natal, ou tomar-lhe a posse. O duende-falador queria algo bem mais  improvável: “Que o Natal não fosse só do pai Natal”, a que o velho das barbas, quando  descobriu que este ano nem uma prenda ainda havia, gritou uma dúzia de vezes: “mas  sem duendes nem há Natal!”. E disso não sobravam dúvidas, mas o que os duendes  passaram a desejar foi aquilo que deixaram bem claro: “Que houvesse, isso sim, Natal  com todos”. Queriam entregar também prendas, receber também cartas, ter também  bolachas e leitinho morno à espera em vez de só ter os dedos cortados pelo mais fino  papel de embrulho e laços sujos presos ao que sobrava da pouca sola de sapatos com  biqueiras já partidas. É óbvio que isto foi intolerável! O velho, sem hesitar, exigiu a  cabeça do duende-falador, dando cinco horas para a rendição deste, que nunca  acedeu a tal pedido e passara a falar cada vez mais e melhor. O velho insistiu mas os  duendes bateram o pé: a cabeça do duende-falador era excessivamente valiosa para  ser entregue. Nada feito! A língua do duende-falador era a rampa para mais do que a  liberdade, para mais do que o sucesso, para mais do que tudo. A língua do duende falador era o início de um Natal partilhado e verdadeiramente humano! O autêntico  começo de um Natal onde todos, em todos, e por todos, pudessem embrulhar prendas,  receber cartas, comer bolachinhas e, provavelmente até mais do que isto, que as  feridas feitas pelo papel de embrulho não rasgassem as mãos dos mesmos de sempre:  “Um Natal justo!”, grita, de uma vez, o duende-falador enquanto via o velho a desistir do  conflito. Sim! O velho descalçava as chanatas pretas, depois de ter arrancado as  barbas, e, serenamente encasacado, partia rumo a uma neve selvagem que o apagava  ao longe. Os duendes corriam às janelas das linhas de produção paradas há dias, e, festejando, confirmavam o que alguém antes anunciava: o velho das barbas já só era  um velho, que mantinha a falsa aparência de barbas brancas porque, até aos queixos,  era engolido, a cada passo, pela neve que o soterrava, acima e abaixo. O duende falador falava mais do que nunca e um novo Natal começava, mesmo, a projectar-se.  Contudo, havia um problema: o 25 de Dezembro, daquele ano, aproximava-se cada vez  mais. Era preciso decidir! Se já este ano se podia fazer um Natal verdadeiramente  humanizado era imperativo começar a trabalhar de imediato. “Mas e se essa for uma  táctica do velho?”, perguntava um duende desconhecido a quem o duende-falador  rapidamente respondia: “Se ele voltar, não o deixamos entrar! Agora há um novo Natal, de  todos e com todos!”. Mas tão rápido, do Natal, não se voltaria a falar: a neve em  horizonte começava a mostrar que algo de lá vinha. Cada vez mais perto, a mancha que  o horizonte atirava, ameaçava desenhar o fim do sonho que havia durado pouco mais  de uma semana ou nem isso. Talvez, entre produção de prendas sem fim, tudo isto não  passasse de um inusitado devaneio do duende-falador que, na verdade, não mais fosse  que um simples duende-comum de desejos reprimidos e lágrimas em lugar do  coração. Não se sabe! Sabe-se que, por agora, os duendes não reparavam no horizonte  distante e, de lá, vinha, como imaginam, já não o velho das barbas, mas, antes,  precisamente, de bem longe, isto: os humanos! Essas frágeis e estranhas criaturas de  metro e meio, sem jeito para nada e óptimas em tudo, guiadas, a passo-corrida lento,  por um eco sem voz que impunha: “Exigimos o Natal!” em morna, mas robusta,  repetição. O duende-falador propunha-se receber os humanos e explicar-lhes o plano  que havia sido delineado para um novo Natal como nunca visto, não imaginando que, de uma assentada, mais rápido do que qualquer palavra não dita mas pensada, seria,  violentamente, apedrejado por bolas de neve infinitas. A língua do duende-falador era  mesmo incrível e nunca encontrada na existência, mas com mais de duzentas bolas de  neve de rajada na cara quem conseguiria falar? O duende-falador, à frente dos outros  duendes, que desatariam a correr aterrorizados sem direcção, morreria, de verdade ao  peito, a tentar dizer o que todos queriam que fosse dito mas ninguém arriscava ouvir,  em plena cama de neve gelada, de onde, o velho, rompante e efusivo, surgiria,  inesperadamente, com uma longa barba branca, um disfarce vermelhíssimo impecável  e, o que ninguém esperava, um plano único para salvar o velhinho e perro Natal:  milhares de elfos por todo o lado! Elfos com mãos robustas, corações pequenos, pés  descalços e sorrisos agrafados às orelhas postiças. O Natal, já nem lembrado como  verdadeira luta de duendes esquecidos, aconteceu passadas as semanas que haviam a  passar e foi, evidentemente, feliz, sem diálogo íntimo e sem honesta partilha, mas com  incontáveis filhoses, sonhos, rabanadas, azevias, bolo-rei, bolo-rainha, escangalhado,  pão de ló, arroz doce, aletria, broinhas e um muito, mesmo muito, eterno e próspero  ano novo.

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