As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem
esquecidas noutras, morrem todos os dias
na gaguez dos que as herdaram.
Jorge de Sena in Noções de Linguística
Quando cheguei aos Estados Unidos, em 1968, e me matricularam na escola primária, tinha eu então 10 anos, tentaram americanizar-me, começando pelo nome. Já não era Diniz, mas sim Dennis e os dois nomes do meio, Aurélio e Lourenço, desapareceram. À moda da América é assim, dizia uma tia minha, que há muito vivia nos States. Nessa mesma escola primária, rodeado de alunos cujos pais ou avós tinham vindo um dia dos Açores, já que era uma unidade de ensino numa zona rural de Tulare, circundada de herdades e ranchos, palavra que já conhecíamos nos Açores, para onde haviam emigrado, e continuavam a emigrar muitos açorianos, fiquei como peixe fora de água. É que quase ninguém, apesar da ascendência portuguesa, falava a nossa língua. Bem, existiam dois ou três que se exibiam com os seus vocábulos extremamente eróticos. Mas, na generalidade, pouquíssimos se afirmavam portugueses, a não ser a meia dúzia que, como eu, acabara de chegar dos Açores e era vista como autênticos estrangeiros, como greenhorns, o vocábulo depreciativo favorito, porque lá estava o nosso sotaque, o nosso vestuário, as nossas ações, a nudez do nosso choque cultural à vista.
Já na escola secundária, recordo-me de se falar na possível criação de um Clube Português. Porém, havia o receio de nos verem como diferentes e queríamos ser assimilados o mais brevemente possível. Uma grande pressa para se ser americano! Tudo o que nos cercava era de facto americano e ser português não era assim tão exótico como ser alemão, irlandês ou italiano. Ser dos Açores estava conotado com os pobres ordenhadores de vacas que tinham vindo de uma terra pequena e faminta. É que para os jovens luso-americanos, que haviam nascido nos Estados Unidos, éramos os portuguesinhos. Uma espécie de subclasse operária vinda das ilhas para trabalhar nas vacarias dos pais deles. Raramente éramos convidados para entrar nos seus clubes e as suas atividades escolares estavam-nos, implicitamente, off-limits.
Vivíamos, definitivamente, encalhados entre duas culturas. As quais por vezes pareciam, e eram, extremamente antagónicas. Na escola, era-nos exigida a assimilação total e em casa eram recriadas as vivências de uma freguesia açoriana sem ter a evolução natural da terra natal. Tudo isto com o suplemento de uma terceira via: os eventos sociais da comunidade portuguesa, que eram uma miscelânea de costumes açorianos fundidos com os americanismos das segundas e terceiras gerações. Recordo-me que um dos momentos mais estranhos foi ir a uma chamada festa portuguesa e ouvir quase todos os jovens da minha idade falar inglês.
Presentemente, as comunidades da Califórnia são bastante diferentes desses remotos finais dos anos sessenta e princípios da década de setenta. Há 40 anos que a emigração estancou para o estado do Eldorado e, atualmente, os emigrantes que chegaram nessas décadas têm uma voz ativa nas instituições portuguesas, quer nas que já existiam, quer naquelas que criaram. Hoje, em várias escolas e universidades da Califórnia, os jovens que já pouco ou nada falam a língua portuguesa em casa, porque os pais também comunicam em inglês, aparecem com a formação de clubes e organizações estudantis conotadas com a nossa herança portuguesa, principalmente açoriana. Hoje, existem várias escolas do ensino oficial (11 na Califórnia— 9 das 11 no Vale de San Joaquim) e do ensino particular ligadàs às associações (cerca de 7 na Califórnia), onde se ensina a língua portuguesa. Isto para não falar dos estabelecimentos do ensino superior. Hoje já não há vergonha em ser-se português e é com uma dose de muito orgulho que se é açoriano. Os jovens afirmam a sua identidade sem qualquer complexo. Mas também há que dizer que é outro género de afirmação. Aliás, não podemos pedir que eles sejam os mesmos portugueses e açorianos que nós fomos ou somos.
Desde que o multiculturalismo começou a pegar em terras do Tio Sam e as gentes açorianas se estabeleceram, economicamente falando, desapareceu o estigma negativo de ser-se das tais ilhas pequenas e pobres. Presentemente, fala-se dos novos Açores, das suas paisagens, das suas gentes, da sua riqueza cultural e do seu desenvolvimento. Porém, quase tudo isto é feito em inglês, pelo menos entre as novas gerações. Há uma realidade que Onésimo Teotónio Almeida já havia referido há mais de 30 anos: “A língua portuguesa só se manterá nas comunidades emigrantes enquanto viverem os que a trouxeram como língua materna.”
Então que resta para os que já não falam em português? Para os filhos, netos e bisnetos de emigrantes? Acredito que apesar do pouco ou nenhum conhecimento da língua portuguesa, a mesma poderá ser um fator de união. Isto pode parecer paradoxal, mas não o é. É nas escolas e nas universidades onde se leciona a língua portuguesa que os jovens açor-americanos muitas vezes se conhecem e estabelecem as pontes que se desejam. É nesses estabelecimentos do mainstream americano que muitas vezes aprendem algo sobre a sua cultura e a partilham com os outros grupos étnicos que compõem o mosaico americano. As aulas de Português nos estabelecimentos do ensino oficial estadunidense são espaços privilegiados para os nossos jovens de ascendência açoriana, porque fazem parte do mundo americano, que é o nosso mundo. É que cada vez mais, os jovens luso-descendentes procuram ambientes ligados às suas origens dentro do já referido mainstream americano, nos locais que frequentam.
Os desafios para a língua portuguesa na Califórnia são multíplices e claro que tudo se tornaria extremamente mais fácil se os pais, aqueles que ainda sabem falar português, o fizessem com os seus filhos. Mas todos compreendemos que na vasta maioria dos casos, isso jamais acontecerá. Entretanto, não fiquemos desencorajados. É que se existem desafios, e existem, também há esperança. Nas escolas do ensino oficial americano onde se leciona a língua portuguesa, existe, particularmente onde há professores dinâmicos, a procura pela nossa língua. São as segunda e terceira gerações à procura das suas raízes e da língua dos seus antepassados. Nas escolas do ensino comunitário, outrora muito ligadas aos emigrantes e aos seus filhos, começa-se, em certas zonas da Califórnia, a registar a procura das mesmas unidades de ensino pela parte das terceira e quarta gerações, robustamente desejosas que os seus filhos aprendam algum português – a língua que os pais e os avós não lhes ensinaram. Aliás, cada associação que deseje movimentar as famílias jovens deveria oferecer aulas de língua portuguesa e esta foi uma proposta que em tempos idos apresentei ao então Cônsul Geral de Portugal, Nuno Matias.
Mais, nas universidades da Califórnia há interesse pela língua portuguesa e particularmente pelos estudos ligados aos Açores. Existem mais de uma dúzia de universidades com programas de Português e teríamos muitos mais alunos se começássemos a investir nos community colleges, um conceito de ensino superior muito americano, completamente incompreendido pelo poder do Terreiro do Paço em Portugal, mas a tábua de salvação para uma grande percentagem dos jovens estudantes universitários, incluindo, obviamente, os portugueses.
Daí que a língua portuguesa, mesmo na longínqua Califórnia, continue a ser fator de união das nossas comunidades. Não o é, nem o será, de uma forma tradicional ou ortodoxa, como no passado, mesmo recente, a temos entendido, ou seja, como língua materna e língua de comunicação diária. Será, sim, uma língua de referência para os jovens açor-descendentes que a aprenderão como forma de estarem ligados à sua cultura, à sua herança, mas que em raros casos, a não ser que o façam por motivos profissionais, terão conhecimentos suficientes para se expressarem livremente, mesmo como segunda língua. É que há que ter em consideração as políticas da Califórnia para com o ensino de línguas estrangeiras.
A língua como fator, como traço de união nas nossas comunidades da Califórnia, a médio e a longo prazo, será possível se apostarmos em levá-la junto das novas gerações; se a promovermos sem complexos de inferioridade, mas também sem arrogância; se nos consciencializarmos que muito tempo se perdeu e muito tempo se perderá se continuarmos a insistir na mesquinhez que, infelizmente, ainda está tão patente nas nossas comunidades e é alimentada pelos divisionismos de quem vem de fora fazer capelinhas e alimentar vícios para seu benefício próprio em detrimento da verdadeira comunidade. O que o escritor Miguel Torga eximiamente soube expressar: “A alma pequena dos pequenos, ninguém admira ninguém e aplaudimo-nos quando aplaudimos.”
Entretanto, muito faremos e construiremos se tivermos capacidade de apostar nos locais do mundo americano onde a língua portuguesa é lecionada, interiorizando-os como veículos privilegiados que podem criar nos mais novos o gosto pela sua aprendizagem e daí conseguirem uma outra ligação à sua cultura, à sua história pessoal e coletiva. Numa comunidade dinâmica temos que apostar nas foças vivas da mesma. É impensável que nos últimos três anos, com tanto investimento de Portugal, não se tenha tido, no mínimo, meia dúzia de novas escolas do ensino americano com cursos de língua e cultura portuguesas. As escolas e universidades com cursos de língua portuguesa têm de ser centros transmissores e promotores de cultura e não apenas instrumentos de ensino de gramática, porque tal como afirmou um dia o Professor Dr. Machado Pires: “Não é a gramática que faz a língua; não a fala ou escreve, não a cria ou recria quem sabe mais regras, mas quem a vive.”
Para que a língua portuguesa não se transforme numa mera peça de museu e para que a cultura açoriana não fique resumida a árvores de genealogia e malassadas, como acontece em alguns casos, que, peculiarmente, têm sido exaltados por quem não compreende estes fenómenos e o potencial da diáspora, há que atuar antes que passe ao estado moribundo. Há que reunir estes novos fatores de união, aceitá-los como a solução possível e desempenhar esforços para que sejam elementos importantes no crescimento cultural das novas comunidades açorianas que despontam pelo Oeste americano.
Muito mudou desde os tempos em que chegávamos e nos modificavam os nomes, e a assimilação de então, hoje, como é óbvio, vem diretamente do berço. Sabemos e percebemos o que se passou com os Joãos, os Josés, as Marias de Fátima e as Rosas de então. Agora esperemos que os Michaels, os Stevens, os Ryans, os Jeffreys, as Melissas, as Judys, as Lindas e as Sefanies de hoje possam ver na língua portuguesa esse fator fortificante de ligação ao seu passado, ao seu legado cultural, à sua identidade. E isso só se faz com a comunidade e com quem está inserido na mesma.