Eu sou o renitente o inconformado
Por isso me deitaram mau olhado
E por isso persisto e canto e falo.
Manuel Alegre

A diáspora portuguesa em terras americanas comemorou o 10 de junho. Basta um simples relance pelas redes sociais e pelos jornais que servem os emigrantes em terras estadunidenses para vermos como foi, ainda mais uma vez, celebrado este Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, estas, as comunidades, entenda-se, como um simples acrescento à falta de imaginação que ainda se tem em relação à diáspora, de uma forma muito particular à dos Estados Unidos. Se é certo que nos faz bem a plêiade de eventos em torno do içar das bandeiras, do discurso circunstancial e da fotografia para a posteridade, não é menos certo que precisamos mais – muito mais.  Uma diáspora que se preze não pode ficar satisfeita com esses gestos meramente efémeros. Portugal, se quer ter a diáspora de que precisa, com o peso que a mesma tem no mundo americano e nas relações transatlânticas, terá de ir além destes espetáculos momentâneos que podem fazer soberbas manchetes em jornais e noticiários na Santa Terrinha, mas não nos levam aos patamares que o país necessita.

A comunidade de hoje nos Estados Unidos não é a comunidade de ontem, nem tão-pouco a comunidade desta manhã. Já o escrevi, repetidamente. A nossa diáspora nos Estados Unidos está espalhada por toda a união americana e mesmo onde criou guetos, está a libertar-se dos mesmos.  Há comunidades, como na Califórnia, por sinal ainda o estado da união americana com o maior número de luso-descendentes, onde há décadas que estamos inseridos na sociedade em geral e está à vista o número de luso-eleitos, de homens e mulheres nos mais variados ramos do mundo empresarial, na agricultura, na tecnologia, na academia e nas artes. O nosso dilema, na diáspora e no Terreiro do Paço, é que nos limitamos a dar ênfase a quem aposta no gueto luso-americano para aparecer, ficando à margem, e desconhecidos pelo mundo político português, tantos homens e mulheres com raízes em Portugal (incluindo as regiões autónomas), que inseridos no mundo americano contribuem significativamente para o país dos seus antepassados sem a necessidade de estarem juntos a cada bandeira que é içada. E pelo lado de Portugal, fico cada vez mais convencido que até têm um certo gosto pelo folclorismo que, infelizmente, ainda gostamos de mostrar. Depois de tanto que se tem escrito e dito, custa engolir que o mundo político português ainda persista em visitas cerimoniais que pactuam com o que dizem que temos de ultrapassar.

A diáspora portuguesa nos Estados Unidos tem um potencial inimaginável para Portugal.  Toda a gente o diz, mas raramente se trabalha com o que temos construído no mundo americano.  Os nossos desafios, que também os temos, sobre os quais foram gastos uma tonelada de papel, muita tinta e demasiadas palavras, jamais serão enfrentados se olharmos para o outro lado do rio Atlântico, particularmente no seio dos poderes centralistas, para respostas pragmáticas. O futuro da diáspora está nas próprias comunidades. Somos nós que precisamos de continuar a construir a nossa casa, completamente integrados no mundo americano, com todas as complexidades que o mesmo tem, e atentos, para que não nos continuem a tapar o sol com a peneira. E somos nós que temos de definir, sem presunção e água benta, as prioridades da nossa diáspora, incluindo a trajetória das visitas oficiais, as quais não podem ficar por meia dúzia de eventos pomposos ladeados de famintos pelo momento da câmara fotográfica, ou melhor, do telemóvel com acesso instantâneo às redes socais. Há que sacudir com o mofo de décadas, o bolor de caserna e de convento, tal como Manuel Alegre escreve num dos seus poemas, que tem levado muitíssimos luso-descendentes a desligarem-se destes eventos onde, por muito que se esprema, não sai uma gota de sumo. Há que quebrar-se, de uma vez por todas com, e cintando de novo Manuel Alegre, “tanto cochicho onde é preciso falar alto”.

O 10 de junho, pela sua simbologia, e sem esquecermos como foi utilizado pelo regime fascista durante muitos anos, do dito Estado Novo, é, apesar dessa história, uma data ideal para, e ainda outra vez, se refletir na nossa diáspora. Deixemos as romarias e os bailaricos onde devem estar, com os festejos dos nossos Santos Populares, onde cai bem uma boa sardinhada e uma cerveja Sagres – pessoalmente prefiro Melo Abreu. Aproveitemos o 10 de junho para levarmos Portugal junto do mundo americano, com a riqueza da nossa cultura literária e artística, a que se cria constantemente em Portugal e a que os luso-americanos criam nos Estados Unidos. Portugal, e a portugalidade que temos plantado nos Estados Unidos, merecem mais, muito mais do que um içar de uma bandeira, ou um discurso patriótico para gente que há muito faz juramento à bandeira das riscas e estrelas, mas que, à sua maneira, continua a ser portuguesa.

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O orgulho português (Portuguese Pride) de que é moda falar-se, não pode ser motivo para não olharmos claramente para a metamorfose da nossa diáspora em terras norte-americanas.  O Portuguese Pride não nos deve cegar, pelo contrário, deve abrir-nos bem os olhos para quem somos e como ainda somos vistos na nossa terra de origem, ou na terra dos nossos pais ou avós, pelos poderes, sejam eles políticos, culturais ou religiosos. Esse orgulho português deve movimentar os políticos luso-americanos para serem mais coerentes com as suas comunidades e enfrentarem os seus congéneres em Portugal, independentemente da cor política, com as necessidades das mesmas comunidades. Esse orgulho português deve levar o mundo do ensino da língua portuguesa nos Estados Unidos, desde os professores aos diretores escolares, a impor-se perante qualquer interferência que não compreenda a nossa realidade. Esse orgulho português deve levar-nos, por exemplo aqui, na Califórnia, a questionar porque é que temos apenas 11 das mais de quatro mil escolas do ensino secundário público neste estado a ensinarem a língua portuguesa. Esse orgulho português, deve levar-nos a cuidar da história comunitária, construída pelos nossos antecessores, porque todos estamos aqui sobre os ombros de alguém. Esse orgulho português não pode ficar guardado num armário e trazido à mesa apenas uma vez por ano. Esse orgulho português tem de ter a audácia de enfrentar o que é fictício, venha da comunidade, onde parafraseando de novo Manuel Alegre há “tanta cebola a fazer de flor”, ou de Portugal, de onde, e de novo citando Alegre, apanhamos “tanta malha/tanta mágoa apanhada uma a uma.” Esse orgulho português tem de englobar a intrepidez e a lucidez necessárias para vermos, uma vez por todas, que se não cuidarmos, sim, nós próprios, da comunidade hoje, daqui a nada ficaremos, como já se vê em alguns lugares, como um povo que coze malassadas e baila uma chamarita envelhecida.

O 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, que já tem direito a resolução nacional no congresso americano e em outros hemiciclos estaduais, deve ainda incluir, como aconteceu recentemente na Califórnia, resoluções que sejam direcionadas para a comunidade que somos, para homens e mulheres, emigrantes ou luso-descendentes que compreendem as suas vivências num país cada vez mais multicultural e usam a sua herança cultural para fazer pontes com outras etnias e outras culturas e daí estarem no seu quotidiano a contribuír diretamente para Portugal e a portugalidade.  O Portugal que se deve construir no mundo americano, como já o disse, repetidamente, tem que fazer parte das nossas vivências diárias, tem que estar tão integrado no mundo americano como as comunidades.

Para que o 10 de junho seja o dia da portugalidade em cada espaço onde vive um português, há que exigir mais a nós p´roprios, que habitamos o espaço além-atlântico, e há que convencer Portugal, que de uma vez por todas acredite nas suas comunidades e crie, como já o fizeram outros países com gente dispersa por várias latitudes, um Ministério da Diáspora, com competências para se gerar uma série de projetos e políticas que beneficiem o país e fortaleçam as comunidades. Aí sim, haverá razão para se içar bem alto a bandeira nacional nas várias vilas e cidades onde está a nossa comunidade, espalhada um pouco por todos os estados da união americana.