De súbito, o caso dos dois estudantes de Famalicão reprovados devido a faltas excessivas à disciplina de “Educação para a Cidadania e Desenvolvimento” deu azo a um afluxo de abaixo-assinados na sociedade portuguesa. De um lado, o manifesto “Em defesa das liberdades de educação”, subscrito por um conjunto de cidadãos respeitabilíssimos que o português comum associa automaticamente a tonalidades laranja e azuis. De outro lado, e de natureza reativa, o manifesto “Cidadania e Desenvolvimento: a Cidadania não é uma opção!” (assim mesmo, com ponto de exclamação), subscrito por ainda mais cidadãos respeitabilíssimos (adiantando-se assim na corrida quantitativa) que o português comum apenas com um engenho da imaginação associará automaticamente a tonalidades laranja e azuis. O debate gira em torno da viabilidade de se invocar o instrumento da objeção da consciência à frequência obrigatória da dita disciplina ministrada nos 2.º e 3.º ciclos de escolaridade. Porém, uma leitura mais atenta por parte de quem pretenda ainda formar uma opinião razoável sobre o assunto dificilmente não provocará um estado depressivo.
Ambas as listas de subscritores impressionam. Ambas contêm nomes de pessoas que admiro pelo currículo, ambas contêm nomes de pessoas que considero amigas, ambas contêm nomes de pensadores de primeira água. Sobretudo por isso mesmo, muito impressiona a inanidade dos dois textos. O primeiro, que parece saído do teclado de um estudante de direito de 2.º ano, dada é a coleção introdutória de considerandos de documentos jurídicos, a qual parece confundir premissas de natureza jurídica com premissas de natureza moral ou estritamente política, limita-se a defender a invocação da objeção da consciência perante a disciplina de “Educação para a Cidadania e Desenvolvimento” com base no direito de os pais educarem os filhos em matérias de consciência privada. Depois de quase três páginas de considerandos, dois pequenos parágrafos afirmativos parecem bastar para se chegar à conclusão escolhida. O leitor interessado em perceber se é a disciplina como um todo ou apenas um punhado de conteúdos programáticos que justifica a objeção de consciência bem pode continuar a procurar.
O segundo, mais emotivo no tom, pretende contra-argumentar focando-se na importância da disciplina para nivelar o acesso de todos os estudantes a valores, supostamente suportados por um pilar científico, próprios de uma cidadania ativa minimamente informada, tais como “a sustentabilidade ambiental, a interculturalidade, a saúde, a segurança rodoviária, a igualdade de género”. Em momento algum surge justificado o elemento de obrigatoriedade da disciplina com um peso tal que não admitiria a invocação da objeção de consciência ou uma inscrição por defeito em que os alunos poderiam optar por se “desinscrever”, como se o papel dos pais na educação dos filhos menores fosse um pormenor negligenciável. Aliás, nem sequer a disciplina chega a ser justificada, senão alguns dos seus conteúdos programáticos. A ideia de base parece ser: somos cidadãos, logo, tem de se aprender cidadania, e a maneira de o fazer é através desta disciplina, tal como só se aprende Língua Portuguesa ou Matemática através dos conteúdos programáticos definidos para essas disciplinas.
Ora, voltando ao português comum, essa categoria abstrata capaz de abarcar tipologias tão variadas como o típico consumidor de produtos do grupo Cofina e o intelectual cioso da sua multiculturalidade, não será fácil a perceção do objeto desta discussão. Afinal, aprender cidadania é aprender esses conteúdos? A disciplina pretende ensinar a ser um bom cidadão (seja lá o que isso for) ou conferir aos estudantes, em pé de igualdade, os instrumentos necessários para um exercício energético e informado da cidadania que não sejam abordados nas restantes disciplinas? O objetivo é pregar o valor dos peixes ou oferecer canas de pesca e manuais de utilização das mesmas?
Seguindo os pontos fundamentais do segundo manifesto – a ciência e a ética na base da educação, a preferência pelo conhecimento perante a ideologia, a importância da responsabilidade individual e do cultivo pelo bem-estar coletivo, a partilha equitativa do conhecimento –, não deveria ser difícil definir as intenções de uma tal disciplina: literacia jurídica (incluindo direitos humanos, claro, mas também outros tipos de direitos da ordem jurídica portuguesa que os estudantes poderão exercer chegando a adultos), literacia política (incluindo dados básicos sobre a estrutura constitucional portuguesa e os vários modos de participação política, já criados ou por criar), literacia económico-financeira (incluindo o modo de funcionamento de instituições de crédito e dos seus instrumentos, que muito provavelmente afetarão a vida dos estudantes na chegada à idade adulta), literacia ambiental (incluindo sustentabilidade, claro, mas também vias de participação política promotoras do ambiente). Por outras palavras, conteúdos que farão falta aos estudantes quando forem cidadãos adultos para garantia da sua liberdade e que não sejam ministrados noutras disciplinas.
Em rigor, os conteúdos programáticos da disciplina “Educação para a Cidadania e Desenvolvimento” extravasam em muito os seus propósitos. Temas de civilidade são ministrados em qualquer pré-escolar; temas de sexualidade são abordados em Biologia; temas de direitos humanos e interculturalidade são abordados em Filosofia; temas de sustentabilidade podem ser abordados em Geografia. Quanto à aprendizagem da importância do uso de argumentos no espaço público e do atendimento à voz do outro, ao respeito pela opinião alheia, à ênfase nos processos de deliberação coletiva em que todos contam e ninguém é deixado para trás, tudo isso faz parte do chamado currículo escondido, providenciado pelos valores expressados no comportamento das autoridades de ensino, desde o professor na sala de aula aos sábios obscuros do ministério da educação (sendo que, neste último caso, bem se pode dizer que o currículo esteja deficitário há vários anos).
Porém, nada disto é discutido nos abaixo-assinados. Ninguém parece advogar a alteração dos conteúdos da disciplina. Ora se defende a objeção de consciência, ora não. A aparência do confronto é afinal dualista, a equipa “laranja-azul” com a liberdade dos pais em educarem os filhos no emblema, a equipa contrária com a cidadania por bandeira. No espaço público, o panorama fica facilitado. Mas, chegando mais fundo, tudo se desliga. Uns são contra, outros a favor. Muito bem. Mas contra e a favor do quê? Da existência da disciplina? Da sua obrigatoriedade? Da sua obrigatoriedade forte, sem dispensas? Da cidadania? De todos os conteúdos do programa? Da sua paucidade ou da abundância? De apenas alguns conteúdos? E quais? O respeito pela igualdade de género ou a sustentabilidade ambiental? Ou ambos em simultâneo? E porquê? Adivinha-se, mas não se sabe.
O motivo por que se não sabe é que os manifestos não demonstram grande vontade em discutir estes assuntos. E assim vai o debate sobre a educação e a cidadania em Portugal, resumido a um jogo de ténis em que as palavras fazem as vezes de bola. Talvez ajudasse se os subscritores frequentassem a disciplina, ou que se dessem ao trabalho de falar com estudantes e professores da mesma. Ou, pelo menos, que contribuíssem para uma reflexão séria sobre o papel da educação em Portugal perante diferentes conceções de cidadania. Não o fazendo, não dão um grande exemplo de cidadania e desenvolvimento.