Se há algo que a filosofia faz mal, é reflectir a quente. Do alto das suas torres de marfim, os filósofos enxergam melhor quanto mais ao horizonte se estende o olhar e quão mais estática for a paisagem. Em piso térreo, e com o mundo adiante em convulsões, o primeiro instinto que lhes nasce é o de prescrever, não o de analisar. Porém, há algo de inerentemente desafiante na actual expressão do coronavírus SARS- CoV-2, tão facilitadora de juízos drásticos como “esta é a crise mais grave por que passou o mundo”, “agora sim, aprenderemos a responder às alterações climáticas”, “doravante, seremos a geração-coronavírus”, ou “depois disto, nada será igual”. É que o sucedâneo das respostas públicas à propagação da pandemia tem dito muito da maneira como as democracias liberais se veem nestes tempos. Apertadas por um desafio de vida ou de morte, entendem como natural e única via possível de resistência uma política do encolhimento.

Condicionados pelo provisório, apenas um punhado de notas estão por agora disponíveis aos filósofos políticos.

O regresso do Estado-nação

Suspeita de haver infectado ratos e felinos, a Covid-19 não é necessariamente humanista, mas é decerto cosmopolita. Nascida na China, cedo aproveitou a globalização e, ao contrário dos seus ascendentes SARS, invadiu as sociedades ocidentais. Desprezando a nacionalidade do hospedeiro e tratando todos os humanos como iguais, aspirou à universalização. O Estado, enquanto entidade paroquial e particular, seria então irrelevante.

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Da perspectiva das teorias cosmopolitas, esta tensão entre universalismo (moral) e particularismo (estadual) não é necessariamente irresolúvel. Partindo da distinção de Kant, na sua obra A Paz Perpétua (1795), entre os níveis estadual, internacional (da relação entre Estados) e cosmopolita (da relação entre Estados e estrangeiros), o Estado poderia ser não tanto um empecilho, mas uma necessidade do direito de autodeterminação dos povos, conquanto estivesse ao serviço dos princípios cosmopolitas. O cosmopolitismo seria o resultado de um processo contínuo pelo qual instrumentos morais universais seriam progressivamente absorvidos pela lei positiva dos Estados, naquilo a que a filósofa Seyla Benhabib chamou de “política jurisgenerativa”. A tensão entre universalismo e paroquialismo nunca seria superada, mas poderia ser progressivamente amenizada.

O que se tem visto, porém, na resposta à disseminação do vírus, é um esvaziamento dos âmbitos cosmopolita e internacional. Os Estados assumiram o monopólio do controlo da resposta ao vírus dentro dos seus domínios territoriais; a contagem de infectados e mortos recorreu à linguagem dos nacionalismos e dos domínios territoriais (x aqui, y ali); a cooperação internacional foi deixada tão em suspenso quanto os direitos de circulação dos cidadãos; as tentativas de planos de recuperação para o futuro breve demonstraram fraca solidariedade entre governos, incluindo uma amostra adicional da impotência do projecto europeu perante crises comuns; organizações internacionais como a ONU e o G20 voltaram a mirrar; e os níveis de obediência à imposição estadual generalizaram-se, como que reforçando a legitimidade única das entidades estaduais em lidar com uma crise global. Em situações de aperto, a política parece retornar às suas fundações modernas e agarra-se ao bote salva-vidas do tradicional Estado-nação.

O encolhimento espacial

Como que imitando seres vivos sob ameaça iminente, na impossibilidade de fugir, as democracias liberais ensimesmaram-se. Esse gesto de se encolherem sobre si próprias expressou-se por três vias. Desde logo, a retoma dos controlos fronteiriços. Negligenciando o princípio exposto por Spinoza na sua Ética (1677) de que o corpo mais potente é o mais capaz de afectar e de ser afectado, as instâncias públicas acreditaram que a maneira mais eficaz de afectarem seria deixando de serem afectadas. Concentraram o alcance do seu poder normativo, mesmo que sacrificando o total de poder que tinham disponíveis antes. Logo aí, o mundo ficou mais pequeno.

De seguida, a quarentena e o confinamento. Notando que a ameaça é aniquilável apenas pelos próprios hospedeiros (ou seja, de dentro, no corpo e pelo corpo, sem a intervenção externa de vacinas ou medicamentos milagrosos), mas que muitos deles morrem porque hospedeiros, a maior parte dos Estados, com a excepção inicial do Reino Unido e da Suécia, optou pela estratégia de impedir a Covid-19 de encontrar hospedeiros. Para tanto, voltaram a considerar a clássica relação entre liberdade e segurança como dicotómica, sacrificando a primeira em prol da segunda. As restrições aos direitos individuais de circulação generalizaram-se devido ao desconhecimento de quem fosse portador do vírus – o confinamento passou a ser tão exigível quanto a quarentena. Num ápice, os membros das diferentes democracias perderam o contacto directo com o que os faz sentirem-se cidadãos: o espaço público, a rua. A sua esfera de liberdade diminuiu, o mundo voltou a encolher-se. Mas mesmo então, sentindo na pele o desequilíbrio das diferentes liberdades no ponto de partida – estar confinado no centro não é o mesmo que estar confinado na periferia, estar confinado numa moradia com o cônjuge não é o mesmo que estar confinado num apartamento T2 de 100m2 com os filhos.

Por fim, os recursos ao biocontrolo. Pretendendo impedir os serviços públicos de saúde de enfrentarem um vírus do século XXI com medidas próprias do século XX, começaram a proliferar instrumentos de monitorização e controlo do corpo dos próprios indivíduos. Surgiram então aplicações informáticas contendo algoritmos que lidavam com informações relativas ao mais íntimo de cada indivíduo, tais como se haviam sido já portadores do vírus, com quem haviam mantido contacto, por onde haviam andado, que temperatura tinham. No Reino Unido, tornou-se popular uma aplicação que monitorizava a generalização dos sintomas; nos EUA, milhões de termómetros digitais permitiam a uma aplicação gerar um mapa, não da terra, mas da temperatura dos corpos. Em países pouco confortáveis com a liberdade individual, como a China, esses dados tornaram-se do domínio público e eram exigíveis pelas autoridades na gestão dos estados de emergência. Em países democráticos, o consentimento e a anonimidade continuavam a ser requeridos, mas com o peso do definitivo. Paulatinamente, e apesar do alerta de mentes lúcidas como as de Yoval Noah Harari, o âmbito das entidades públicas penetrava dentro de cada um de nós. O mundo voltava a encolher-se e o poder político focava-se tanto que incidia até sobre cada uma das nossas células.

O encolhimento temporal

As democracias têm má fama no que respeita às suas capacidades de lidarem com o futuro. Há razões culturais para isso. A ênfase liberal no individualismo promove um ethos de auto-satisfação que pode ser facilmente confundido com uma busca hedonista do prazer, muitas vezes alimentada por incentivos comerciais ao consumo. Como os indivíduos têm uma vida útil mais curta do que comunidades ou espécies, a necessidade de auto-satisfação parece mais imediata, e os prazeres resultantes tendem a ser efémeros. Mas há quem defenda (por exemplo, na senda de Joseph Schumpeter) haver também razões estruturais para a obsessão democrática com o curto-prazo. Os ciclos eleitorais, necessários por motivos de representatividade, prestação de contas e impessoalidade do exercício do poder num Estado de Direito democrático, assim o exigem. Este afunilar das democracias no curto-prazo explicaria as insuficiências da política quanto à resolução de problemas com impacto no longo-prazo, tais como as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e as condições de vida das gerações futuras.

As democracias liberais, porém, sujeitam-se a críticas tão certeiras quanto incompletas. A verdade é que elas contêm vários instrumentos para lidar com o futuro: provisões constitucionais com vigência intergeracional; horizontes temporais distintos nos poderes executivo, legislativo e judicial; taxas de poupança; orçamentos plurianuais; contratos de concessão com prazos de decénios; previsões demográficas; políticas de desenvolvimento sustentável; planos de contingência.

Os estados de emergência agora invocados suspendem tudo isto e encolhem o poder ao “agora”. O tempo político reduz-se ao momento, ao instante. Daí serem “estados de excepção”, ou seja, excepções também temporais – provisórios, portanto. A originalidade da resposta pública à Covid-19 consiste, contudo, na paralisação da economia, sobretudo da produção. O tempo laboral, que Marx identificara n’O Capital como uma mercadoria, perdeu-se. O desempregado (num sentido literal), impossibilitado de aceder a meios de obtenção de rendimentos, não consegue planear para o futuro. Tem de viver cada dia de cada vez, e cada novo dia é como se fosse um primeiro dia. A ausência de planos para o rescaldo do vírus comprime o tempo político. Ademais, a inflação da linguagem da “crise” justifica apelos contínuos a procedimentos de tomada de decisão semelhantes a estados de emergência, no que constitui uma espécie de oxímoro: um “estado permanente de emergência”. Deixa de haver futuro, o tempo mais não é do que um presente repetido.

O culto da velocidade próprio da civilização hodierna é já promotor do curto- prazo. Se o tempo é mercadoria, quão mais rápida a produção, menor a duração e o custo. À partida, a paralisação económica permitiria ao tempo esticar-se. A reclusão far-nos-ia ver as coisas de uma perspectiva da duração mais longa, a tomar o nosso tempo, a abrandar, a suspender também a liberdade de circulação dos ponteiros do relógio. Mas isto apenas vale na esfera privada. No espaço público, onde a liberdade se justifica, apenas se vê encolhimento temporal. Como se as democracias fossem viáveis apenas enquanto ditaduras do presente.

A ética do heroísmo

As sociedades gregas, quer arcaicas, quer clássicas, promoviam a moralidade de maneira muito distinta da nossa. A virtude residia no carácter, não nos conteúdos do dever, muito menos nos resultados das acções ou das regras; as sanções sociais mais graves incidiam sobre o nome (a vergonha), mais do que sobre os corpos ou a consciência (a culpa). Para os gregos arcaicos, ilustrados e amestrados pelos poemas homéricos, a ética confundia-se com uma estética da força e da violência, formando como que um conjunto de valores estético-comportamentais. O virtuoso moral era o herói, aquele cujo engenho e cujos feitos se superiorizavam aos dos outros homens, mormente em serviço ao bem comum.

O panorama judaico-cristão e as bases do liberalismo inverteram esta tendência. Com o advento da modernidade, o valor da consciência e o consentimento dos indivíduos como critério de legitimidade da autoridade pública tornaram-se critérios morais mais relevantes. Num Estado de Direito democrático, fundado sobre estas bases, a eficiência das estruturas de serviços permite a qualquer profissional competente atingir os fins (mesmo os morais) que justificam o serviço. O que importa é a criação das condições adequadas a cada bom profissional para fazer o seu trabalho bem. Não são necessários super-homens nem talentos sobre-humanos.

Com a Covid-19, porém, voltou a linguagem do heroísmo, como que dando seguimento à insistência na metáfora da guerra. Os cuidadores, os profissionais de saúde, os que estão “na linha da frente”, são heróis – colocam o bem comum acima dos interesses pessoais e sacrificam o seu bem-estar e a própria vida pelo conforto de todos nós.

Infelizmente, o recurso a esta linguagem é certeiro e sintomático das incapacidades que as democracias liberais reconhecem nelas próprias. O desinvestimento na qualidade dos serviços públicos, mesmo daqueles cujas actividades se dedicam à protecção de bens tão básicos como a vida e a saúde, dá azo a que apenas os capazes de superarem os constrangimentos das condições consigam ser valorizados. Quando tudo o resto falha, apenas a força dos melhores impede os restantes de caírem. O heroísmo moral dos prestadores de cuidados de saúde é a melhor ilustração de como o monopólio da prestação de serviços (neste caso, pelas entidades públicas), cessando a cooperação e a concorrência entre demais entidades, conduz ao nivelamento por baixo das expectativas possíveis.

Perante tudo isto, o que esperar das democracias liberais perante os desafios teóricos da Covid-19? Os filósofos decerto não terão respostas prontas. Convém desconfiar dos que as tiverem. Resta esperar, observando. De preferência, preservando aquilo de que mais dependem as próprias democracias: confiança.