A recente publicação da “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030”, da autoria de António Costa Silva, revela conteúdos convidativos a ampla discussão, quer pelo (muito) que diz, quer pelo (muito) que não diz. Apenas por isso, merece uma leitura atenta. Trata-se de um documento suscetível de provocar discordâncias a vários níveis, desde questões de fundo a propostas de pormenor. As críticas a que se sujeitará deverão incidir sobre a preferência pela política A em detrimento da política B, à maior atenção prestada ao problema X do que ao problema Y, à incapacidade de identificar o desafio α como mais relevante para o futuro do que o desafio β. Porém, um passo atrás, dado pela teoria política porventura em direção a uma maior abstração, permitir-nos-á obter uma visão panorâmica da “visão estratégica”, que é provável venha a escapar ao debate em torno dos conteúdos. É que a existência do relatório e a sua forma dizem-nos muito, não tanto do que pensa António Costa Silva acerca de Portugal hoje e amanhã, mas de como a própria democracia portuguesa se entende.

Os pressupostos filosófico-políticos relevantes expressam-se sobretudo no modo de surgimento do documento e no método de estruturação do texto.

Quanto à existência da proposta, saltam à vista as seguintes características:

  • Contratação externa. O relatório de António Costa Silva é uma proposta de orientação estratégica. A necessidade de um plano de recuperação requer a capacidade de refletir nos fins e nos meios para além de um prazo demasiado preso ao presente. A proposta ambiciona essa estratégia para um decénio. Ora, a procura de uma consultoria estratégica fora das instituições políticas demonstra bem como a democracia portuguesa lida mal com o futuro. Em geral, os ciclos eleitorais, necessários por motivos de representatividade, prestação de contas e impessoalidade do exercício do poder num Estado de Direito democrático, aparentam ser traços próprios do afunilar da política democrática no curto prazo. Mas também é verdade que as democracias liberais contêm vários institutos para lidar com o futuro, e é frequente os governos e os parlamentos tomarem decisões que vinculam os cidadãos para lá dos seus mandatos (e, muitas vezes, até as gerações futuras). Que o Governo precise de encomendar a um não-político (não procurando no Parlamento ou numa coordenação entre várias instituições políticas) uma estratégia para um decénio, revela muito de quão atoladas no curto prazo as nossas instituições se sentem no seu papel.
  • Reductio ad unum. O começo do debate sobre a estratégia para um decénio deu-se com a encomenda de uma só proposta a uma só pessoa. O documento está assinado apenas por António Costa Silva e, ao que consta, não existem mais documentos do género encomendados pelo Governo. Sendo uma versão preliminar, o documento está ainda em aberto, ou seja, é um incitador do debate expectável em democracia. Por si só, não é avesso à democracia, visto que dá azo à atualização do pluralismo democrático, estando exposto à crítica e sendo passível de alteração. Mas a própria escolha da unicidade de propostas e de vozes para dar início ao debate revela quão defeituoso o Governo considera as capacidades do pluralismo em Portugal. A proposta revela-se como uma posição por defeito para o debate possível que se segue, ao invés de se optar pelo próprio debate como posição por defeito para a definição de estratégias nacionais. É como se a democracia pressentisse a necessidade de se autossuspender, saindo de si própria, para voltar a motivar-se como democracia.
  • Sebastianismo. Parece persistir na sociedade portuguesa uma vertigem pela salvação, sobretudo se obtida a partir de uma personagem com carácter messiânico. Mas o sebastianismo, enquanto soteriologia, é duplo. Por um lado, depende da expectativa sempre renovável de alguém que nos impeça de cair. Por outro lado, aviva-se enquanto cada um ambiciona secretamente ser o próprio D. Sebastião. Qualquer um se sente capaz de definir uma “visão estratégica”, mesmo se num guardanapo ou numa folha de rascunho, para algo tão complexo e múltiplo como uma sociedade altamente dependente do Estado-Nação num contexto de crise tão globalizada. Isso revela-se também nalgumas das reações ao documento. Porém, se uma estratégia nacional depende de um agregado de opiniões afetadas pelo viés da autoconfiança excessiva, é provável que não venha a ser particularmente frutífera.

Quanto ao formato da proposta, por seu turno, saltam à vista as seguintes características:

  • O tempo. A proposta estica a sua ambição até a um decénio, o equivalente a duas legislaturas e meia ou a dois mandatos presidenciais, contados a partir de um presente em que deixe de haver crise pandémica (o “day after”, consoante pomposamente surge em inglês na primeira frase do texto). Ora, que justifica tal enquadramento? A crise pandémica dificilmente se resolverá em 2020 e é provável que qualquer estratégia que se preze tenha de prever mecanismos de resposta a uma crise duradoura – ou seja, não haverá “dia seguinte” tão cedo. Ademais, porquê limitar a estratégia para o longo prazo a um decénio? Se a necessidade de encomendar uma “visão estratégica” a alguém fora das instituições políticas advém sobretudo de uma eventual capacidade de refletir numa duração indefinida, dez anos parece pouco (sobretudo atentando ao conteúdo de algumas propostas respeitantes à construção de infraestruturas). A justificação para o tempo selecionado tem de ser melhor do que o mero uso de um número redondo ou a expectativa que António Costa tenha de permanecer um político ativo em Portugal.
  • Multiplicidade. A proposta identifica diferentes sectores da economia e da sociedade sobre os quais se deve agir, incluindo Infraestruturas de Transportes, Ecologia, Digitalização, Energias Renováveis, Agricultura, Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia, Organização Urbana, Reconversão Industrial, Justiça. A amplitude de áreas revela a ambição da proposta não apenas quanto aos fins, mas sobretudo quanto aos meios. Que uma geração consiga em tão pouco tempo esforçar-se por otimizar tantas áreas em simultâneo parece algo pouco crível. A concentração de esforços em áreas mais prioritárias, respeitantes a crises não só económicas como humanitárias, seria mais fácil de compreender do ponto de vista estratégico. Mas a definição de prioridades afasta do consenso, o qual é tido por condição necessária de uma estratégia coletiva de longo prazo. A dispersão é então mal menor, em democracia, ao invés de ser a melhor estratégia.
  • Coerência. A coordenação entre os vários sectores abordados no documento, assim como entre as ideias e projetos inventariados, ocorre de maneira pacífica. O plano parece perfeito: chegando a várias áreas e agindo sobre todas elas da melhor maneira, o país como um todo prosperará. Este pressuposto torna o documento coerente, mas eleva-o ao género literário da utopia. Mesmo que houvesse um consenso nacional quanto aos fins do plano, os diferentes sectores identificados têm problemas com diferentes tempos (uns mais urgentes, outros requerendo respostas mais duradouras, etc.) e cada um está exposto a resistências e conflitos internos que impõem diferentes ritmos de (re)construção. A ausência de conflito (ou da antecipação do mesmo) no documento torna-o de difícil aplicação numa democracia complexa como a portuguesa.
  • Infraestrutura. Em Ciência Política, a literatura sobre as políticas públicas destinadas diretamente à afetação do longo prazo foca-se amiúde na aposta em infraestruturas materiais. A proposta de António Costa Silva adota essa via, enfatizando a necessidade de investimento em infraestruturas físicas e de transportes, mormente digitais, ferroviárias e portuárias. Estas sugestões são excelentes, embora decerto não originais. O que é, porém, de notar é a menção à necessidade de investimento em infraestruturas antes da menção ao financiamento disponível. O documento apresenta algumas propostas imaginativas de captação de formas de financiamento, público e privado. Mas parte da lógica de um ponto de partida zero do género “devemos fazer isto, e agora veremos como obter o dinheiro para o pagar”, negligenciando o facto de o Estado português estar já com um nível de endividamento público rondando os 130%. Ora, num país com um património líquido nulo, a confluência de (i) taxas de crescimento fracas ou negativas, (ii) uma incapacidade de uso soberano da inflação, (iii) um património privado líquido insuficiente para compensar a pobreza pública, (iv) um contexto internacional de concorrência fiscal agressiva, (v) uma expectável diminuição demográfica, não se percebe como as fontes de financiamento sugeridas pelo documento serão suficientes para diminuir o peso da dívida sobre as gerações futuras e, ainda, pagar todos os investimentos propostos de reconstrução. Sendo o prazo da proposta de dez anos, o que não corresponde a uma geração, arriscamo-nos a aumentar ainda mais os encargos dos Portugueses do futuro, que já de si terão muito com que se preocupar devido às alterações climáticas.
  • Paroquialismo. O documento define princípios orientadores das políticas públicas, e por isso é compreensível o estatismo nele revelado. O plano de reconstrução depende de uma estratégia levada a cabo por um Estado forte, o que não implica (nada no documento assim o indicia) que se reduza exclusivamente à ação do Estado. Não obstante, se bem que o Estado não é o país, não será menos verdade que o Estado não é uma ilha. A crise pandémica é mundial e muitos dos problemas identificados na proposta são partilhados por outras sociedades, sobretudo no contexto europeu. Fará sentido, então, almejar como estratégia a coordenação internacional ou regional com outros Estados na procura de soluções imaginativas (e comuns) para as diferentes reconstruções económicas e sociais. O recente discurso do secretário-geral da ONU, António Guterres, na Nelson Mandela Annual Lecture, apelou precisamente a isso. Por exemplo, uma reconfiguração das organizações internacionais para o século XXI; a diminuição da concorrência fiscal para aumento da transparência e diminuição das desigualdades; a introdução de impostos a nível mundial ou regional (por exemplo, sobre os rendimentos do capital não investido), que aliviassem os encargos sobre as populações mais pobres e as gerações futuras; a experimentação de meios de subsistência alternativos, como o rendimento básico incondicional; etc. Não há motivo por que Portugal não pudesse definir uma estratégia de longo prazo para a promoção a nível internacional de algumas destas ideias. A proposta de António Costa Silva, porém, é tão paroquial no tempo quanto o é no espaço.

A partir desta delimitação, fica então aberto o debate sobre os pressupostos filosófico-políticos da visão estratégica de António Costa (Silva), que afinal parecem tão ou mais discutíveis do que os conteúdos propostos.

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