Casablanca estreou no New York’s Warner Hollywood Theater a 26 de Novembro de 1942, Dia da Acção de Graças, poucas semanas depois do desembarque dos Aliados na África do Norte francesa. O filme era de Michael Curtiz, um realizador nascido em Budapeste, ainda no Império dos Habsburgo, e com uma longa carreira europeia. Curtiz fora convidado pela Warner Brothers para Hollywood em 1926, depois de já ter feito dezenas de filmes na Europa, entre eles épicos bíblicos, como Sodoma e Gomorra. Em Hollywood, Curtiz dirigiria mais de 100 filmes, incluindo uma série de sucessos, como The Adventures of Robin Hood, com Errol Flynn e Olivia de Havilland, e White Christmas, com Bing Crosby, Danny Kaye e Rosemary Clooney e música de Irving Berlin.

Casablanca, cujo guião era adaptado de uma peça de teatro, Everybody Comes to Rick’s, reunia também um elenco de luxo – Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Rains e Conrad Veidt – e viria a ser, por várias razões, um “filme de culto”, com três Óscares e um lugar cativo no topo das listas dos “melhores filmes da História do cinema”.

A Idade da Propaganda

Com uma intriga sentimental e passional numa conjuntura de guerra e de ocupação, o filme era, claramente, um filme político. O cinema tornara-se, desde os anos 20, uma importante arma de propaganda política. Cmunistas e fascistas sabiam que o cinema, com a força da imagem, era um instrumento poderosíssimo para conquistar e doutrinar as massas. Logo em 1925, Sergei Eisenstein, com 27 anos, estreava o extraordinário Couraçado Potemkine, inspirado numa revolta de marinheiros da Marinha Imperial russa, em 1905; em 1927, também ainda no “mudo”, Pudovkin realizava O Fim de São Petersburgo, uma história passada na tomada de poder pelos bolcheviques. E na década de trinta, já no sonoro e com Estaline no poder, Eisenstein, Dziga Vertov, Pudovkin e outros, cobriam a História da Rússia até à revolução de 1917 e ao culto da personalidade de Estaline. De Eisenstein ficaram, memoráveis, além de Outubro (1928), Alexandre Nevsky (1938) e Ivan, O Terrível(1944-1946). Se a primeira parte de Ivan o Terrível valeu a Eisenstein o Prémio Estaline em 1945, a segunda, acabada em 1946, que mostra Ivan como um autocrata louco, foi proibida pelo Czar Vermelho e só seria exibida cinco anos depois da morte de Estaline e 10 anos depois da morte de Eisenstein em Moscovo, abandonado por todos.

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O fascismo mostrou idêntica preocupação com a Sétima Arte: logo em 1924, Mussolini lançou o Istituto Luce, que se especializou nos noticiários de actualidades, obrigatoriamente exibidos nas sessões do cinema; em 1932, foi criado o Festival de Veneza e em 1937 a Cinecittà. O fascismo prosseguiu uma política de apoio ao cinema italiano, mantendo as produtoras em mãos privadas, mas concedendo-lhes generosos meios financeiros.

Já em pleno “sonoro”, houve filmes de exaltação ideológica, como Vecchia Guardia, de Alessandro Blasetti (que trata do esquadrismo e da Marcha sobre Roma), ou 1860, também de Blasetti, que induz a convergência ideológica do fascismo com o Risorgimento e a unidade da Itália. Por sua vez, os filmes históricos, como a superprodução Scipione l’Africano, de Carmine Gallone (1937), faziam apelo ao império romano para glorificar a aventura africana do regime fascista.

Houve também uma vasta produção de comédias com grandes actores, como Totó e Vittorio de Sica, dirigidos por Mario Camerini, o género de comédia de costumes que, à semelhança das produções portuguesas da época, acabava também por servir a imagem do poder. E entre 1937 e 1941 foi o tempo dos chamados Telefoni Bianchi, filmes cor-de-rosa, com enredos românticos em ambientes de luxo (onde os telefones eram invariavelmente brancos) e finais felizes.

Hitler e o nacional-socialismo apostaram também no cinema como instrumento de propaganda, ficando famosos os filmes de Leni Riefenstahl sobre grandes eventos nazis, como Der Sieg des Glaubens (sobre o Congresso de Nuremberga, de 1933) ou Olympia (sobre as Olimpíadas de 1936).

A produção cinematográfica era posta ao serviço do Partido e da Alemanha em guerra; mas embora a indústria do cinema estivesse sob direcção governamental, através da UFA (Universum-Film Aktiengesellschaft), Goebbels, ministro da Propaganda, procurava não bombardear a população com excessos de ideologia e de guerra. Assim, a par de filmes anti-semitas, como Die Rothschilds e Jud Süss, ou de glorificação de figuras históricas, como Frederico II e Bismarck, entre 1933 e 1945 a Alemanha produziu mais de mil fitas, a maioria comédias ligeiras ou mesmo comédias musicais, que procuravam transmitir uma certa “normalidade” em tempos bastante extraordinários.

A Guerra e as guerras de Hollywood

As democracias – e a democracia americana – também não hesitaram em seguir um caminho paralelo: a partir de 7 de Dezembro de 1941, depois do ataque japonês a Pearl Harbour, a América mobilizou o cinema para o esforço de guerra, numa linha de estado de excepção, criando um organismo, o Office of War Information, para coordenar os meios culturais de propaganda.

Hollywood, “a fábrica dos sonhos”, foi arregimentada: o inimigo número 1 era o fascismo, mas o fascismo alemão, até porque Mussolini era bastante popular entre os italo-americanos.

Casablanca foi alvo de polémica entre os especialistas, com críticas à ambiguidade de algumas personagens, nomeadamente a do herói, Rick (Humphrey Bogart), um cínico convertido à renúncia e às causas do bem comum. No entanto, como propaganda de guerra, e apesar da ambiguidade – ou por causa dela –, Casablanca cumpria bem a missão de explicar as razões da intervenção a um povo favorável à não-intervenção (segundo uma sondagem do Gallup, de 1942, 96% dos americanos eram favoráveis à neutralidade).

No âmbito dessa mesma missão, e muito “à americana”, Hollywood vai produzir, entre 1942 e 1945, cerca de 500 fitas de guerra ou relacionadas com a guerra. Casablanca foi das primeiras e, como notava um crítico, a ideia de cruzada internacional começava logo por aparecer na nacionalidade dos principais actores do elenco: Bogart (Rick) era americano, Bergman (Ilsa), sueca; Paul Henreid (Lazlo), austríaco; Conrad Veidt (major Strasser), alemão; Claude Rains (capitão Renault), inglês.

A moral, prescrita pelo Office of War Information e recomendada pelo produtor Hall Wallis, da Warner Brothers, para o guião de Casablanca, era a de que “os desejos pessoais deviam ser subordinados à tarefa de derrotar o fascismo”.  Os guionistas, os irmãos gémeos Julius e Philip Epstein e Howard Koch, outro judeu nova-iorquino, compuseram a narrativa da paixão de Ilsa e Rick tornada impossível pela guerra e pelo dever, num ambiente de film noir, mais europeu que americano, reforçado pelo protagonismo de Bogart.

Koch ia ser, no ano seguinte, o argumentista de um outro filme político de guerra, também dirigido por Curtiz. Com um elenco bastante mais modesto do que o de Casablanca, Mission to Moscow dava uma imagem paradisíaca da URSS de Estaline.  O comunismo despertava grande hostilidade na América e a ideia era torná-lo aceitável. Koch era comunista e teria depois problemas no tempo de McCarthy.

Casablanca acabou por ser um belo filme e por cumprir a sua função propagandística. Rick, encarnado por um Bogart que em outras fitas do film noir americano aparecia como gangster, detective privado ou marginal, percorria ali todo um caminho de redenção. De cínico e egocêntrico dono de um “gin joint” neutral ou mesmo colaboracionista a encapotado resistente anti-nazi com um coração de oiro (que permitia, com aceno de cabeça, que a Marselhesa de Lazlo se sobrepusesse ao  Die Wacht am Rhein dos alemães no seu estabelecimento), o ambíguo herói iria revelar-se, no final, um devotado altruísta que sacrificava a sua paixão para salvar o rival, em nome da liberdade.

Para o americano médio, talvez céptico quanto ao destino de uma Europa que os seus antepassados tinham abandonado e que ainda era, na tradição dos Quakers, “o Reino do Mal”, a conversão de Rick-Bogart, ou de Bogart-Rick, à causa da liberdade, sacrificando a sua velha paixão, e o abandono simbólico de Vichy do igualmente cínico e simpático capitão Renault-Rains, no Aeroporto, antes do avião para Lisboa, poderiam bem simbolizar o abandono do isolacionismo e o arranque da América para a salvação do mundo.

Mas com política a mais ou a menos, nunca é pela propaganda que as coisas ficam; o que, com o passar do tempo, permanece agarrado à nossa memória são coisas como o As Time Goes By, tocado e cantado repetidamente por um relutante Sam-Arthur (Dooley) Wilson, a pedido ora de uma nostálgica Ilsa-Bergman ora de um masoquista Rick-Bogart.

Tudo coisas que devem estar prestes a ser canceladas pelas novas e mais descarnadas e descaradas propagandas.