Um político a comentar dados científicos pode ser tão confrangedor quanto um cientista a propor políticas públicas. Os últimos meses têm sido produtivos em ambos os casos: desde os boletins diários da DGS e Ministério da Saúde, abundantes em erros e disparates grosseiros, passando pelo embaraçoso Presidente da República a fazer de porta-voz à saída das reuniões do Infarmed, até ao Primeiro-Ministro a prescrever antibióticos para o tratamento de vírus. Por outro lado, respeitadíssimos matemáticos formulam equações preditivas e lançam o pânico na população, antevendo dezenas de milhares de mortos só em Portugal (apocalipse que, já se percebeu, nunca chegará), ou outros cientistas avulsos, que em Março pediam que o país se fechasse em casa, aparecem agora surpreendidos com os elevados índices de contágio em ambiente doméstico. Os exemplos são às centenas, chegam-nos diariamente a partir da imprensa e são exponenciados nas redes sociais, lançando o caos informativo.
Nada disto é surpreendente ou anómalo, nem se trata de um fenómeno exclusivo de Portugal: em qualquer parte do mundo, um político não tem de saber de virologia nem um cientista biomédico tem de saber formular políticas públicas. Como resolver, então, estas discrepâncias, quando a experiência de todos é necessária para encontrar soluções eficazes e informadas? Há um vasto ramo de conhecimento, com diversas linhas teóricas e aplicações práticas, dedicado a juntar decisores políticos, cientistas de várias áreas disciplinares e outros interessados da sociedade civil na tomada de decisões e na formulação de políticas públicas com base científica. Não sei se o Governo e os órgãos responsáveis pela gestão da actual crise de saúde pública recrutaram especialistas desta área, com a função de criar condições de decisão informada. Tudo indica que não, ou, se o fizeram, temo que tenham importado os vícios mais irritantes da má comunicação de ciência, inclinada para a narrativa linear e unidireccional, produzida em linguagem infantilizada e com a função única de fazer passar uma mensagem, mesmo que factualmente imprecisa.
Uma das maiores dificuldades na formulação de políticas públicas com base em evidências é a conversão de dados estruturados em decisões políticas eficazes. Esta dificuldade é tanto maior, quando está em causa conhecimento científico multidisciplinar de elevada complexidade e de difícil compreensão para a grande maioria das pessoas. Nestes casos, dizem os manuais de boas práticas, a informação complexa deve ser simplificada de forma a tornar possível a criação de modelos de decisão. Note-se, no entanto, que os mesmos manuais dizem também, que o excesso de simplificação resulta em modelos simplistas (ou infantis) que revelam a fraca compreensão que os decisores têm dos problemas. Este é o ponto nevrálgico da decisão que deve incluir a participação da comunidade cientifica. Há muitas formas de o fazer, não advogo aqui nenhuma em particular, mas a eliminação da controvérsia científica dos modelos de decisão não deve ser, em circunstância alguma, uma opção, e isso, lamentavelmente, é o que está a ser feito em Portugal.
A ciência é um sistema livre de produção de conhecimento que é continuamente aperfeiçoado a partir de controvérsias fundamentadas, ou seja, sem controvérsia não há progresso científico. Além do mais, quando surge um novo fenómeno de investigação, como é o caso do novo coronavírus, é habitual que os resultados dos primeiros estudos sejam incertos e até contraditórios. Posteriormente, com o aumento do volume de dados, de estudos e de resultados, acaba por haver uma tendência para consensos, mas este é um cenário que pode demorar anos a ser alcançado e em momento algum elimina o mecanismo de controvérsia fundamentada.
Ora, em Portugal, como é sabido, o Governo optou por um modelo de gestão construído a partir de reuniões à porta fechada no Infarmed, com a presença da elite política e de alguns cientistas convidados. Para os mais incautos, isto pode ter uma enorme semelhança com profissionalismo e transparência, mas na verdade não é mais do que um modelo que procura proteger os governantes de eventuais más decisões. Notavelmente, todos os partidos da oposição, sem excepção, saíram sempre destas reuniões como que enfeitiçados por um consenso mágico – ninguém percebeu que a porta das reuniões no Infarmed está fechada não só ao escrutínio público, mas principalmente à restante comunidade científica que, potencialmente, representa um perigo para os governantes. Passo a explicar: quando os governantes anunciam a implementação de medidas em nome da Ciência para combater a propagação do vírus, sem tornar público qual a ciência que está na base das suas decisões, estão a reduzir as evidências científicas ao ponto de vista único e a subtrair do discurso político um factor que se encontra em elevado estado de controvérsia. Tornado público, este factor iria gerar resistências à implementação de políticas públicas e expor as eventuais fragilidades das decisões tomadas, resultando na perda de credibilidade das instituições responsáveis e dos governantes perante o eleitorado.
Não restem dúvidas, por tudo isto, que todas as decisões tomadas pelo Governo na gestão desta crise de saúde pública são decisões exclusivamente políticas, apesar de vagamente informadas em algumas bases científicas que, recordo, foram criteriosamente seleccionadas, enquanto outras terão sido convenientemente excluídas – devemos ter isto presente a cada uso obrigatório de máscara, ou na suspensão do SNS para tudo o que não está relacionado com este vírus, ou na proibição de reuniões em locais públicos com mais de dez pessoas. Todas as proibições e obrigatoriedades impostas pelas autoridades pressupõem um fundamento científico inequívoco e consensual. Sucede que o consenso científico, nesta matéria, não existe, é apenas simulado, por isso, as proibições e obrigatoriedades que nos têm sido impostas não são mais do que actos de fé política com potencial para causar mais prejuízo do que benefício. Há um óbvio conflito entre a natureza controversa da ciência e a política obstinada com o consenso e a unidade nacional. Se, na ciência, a ausência de controvérsia inibe o progresso do conhecimento, na política, a obsessão pelo consenso é uma ameaça à democracia.
Para os governantes, este modelo simplista de gestão tem a vantagem de ser aceite com obediência cega e sem grande contestação por parte da população que, como é sabido, apresenta índices baixos de literacia científica e de envolvimento cívico e democrático. Mas este modelo tem um preço elevado a pagar: empobrece o debate público, reforça o estado acrítico da população, torna o discurso político cada vez mais incoerente à medida que vai sendo desmentido por novos resultados científicos e, por fim, perturba gravemente a percepção pública dos fenómenos científicos relativos ao vírus. Só assim podemos compreender esta espécie de novo mundo distópico edificado pelo medo e pela paranóia, assinalado por uma extrema assepsia que atinge brutalmente as relações humanas e cujos impactos ainda estão por determinar.
Agora, com o fim das reuniões no Infarmed, o Governo anuncia um novo modelo de gestão sem, na verdade, o ter anunciado. Não se sabe exactamente em que consiste, nem se existe um modelo de facto, mas suspeito que se fecharam mais portas ao escrutínio, que a ciência está a tornar-se perigosamente politizada e que a democracia não é para aqui chamada. Ou então estou enganado e a partir de agora teremos um modelo aberto que convoca a controvérsia científica, com todas as implicações que isso traz. Este cenário hipotético levanta uma última questão: estão os nossos governantes preparados para a possibilidade de serem cabalmente refutados pela ciência nas decisões que já tomaram e que pioraram significativamente a vida dos portugueses?