O Plano de Ação para a Comunicação Social não é nem um plano nem resolve o problema de negócio das empresas da comunicação social. Servindo-se das piores práticas de vários governos, dispara medidas soltas, passa ao lado do desafio do setor, e aprofunda uma proximidade perigosa entre Governo e a comunicação social. Entretanto, as liberdades jornalísticas e a regulação do setor, duas áreas onde muito havia a fazer, continuam intocadas.

Num processo coerente, o governo teria partido de um diagnóstico completo e iniciado um trabalho de reflexão sobre melhorias na regulamentação do mercado. Parte desse trabalho consta numas escassas duas páginas que apontam vagamente para ‘’atualização’’ da regulação do setor. A outra parte desse trabalho é a medida 11: o ‘’Estudo sobre o mercado jornalístico e os OCS.’’ O estudo é uma boa ideia: melhor ideia seria esperar pela sua conclusão antes de criar um plano. Havia também uma oportunidade de lançar uma muito necessária revisão do papel do grupo Estado na comunicação social, muito em particular sobre a RTP, interrogando-se sobre mudanças substantivas nas suas funções enquanto serviço público. Ao invés disso, recorreu ao truque mais velho da governação portuguesa: lançou uma lista de trinta medidas, remete os estudos para o futuro, e chamou-lhe um plano. Plano esse que ficará muito longe de resolver um problema comum na sociedade portuguesa: receitas baixas. Na melhor das hipóteses, tudo ficará na mesma.

Independentemente do que se ache da manutenção da RTP enquanto televisão pública, não é difícil de ver como o corte numa das suas fontes de receita, a publicidade comercial, é um duro golpe na sua independência. O autofinanciamento da RTP é fundamental para assegurar a sua autonomia. Ao contrário do que diz a esquerda, esta medida não só não é uma antecâmara da privatização como é uma estatização da RTP. Se houvesse algum problema no modelo de financiamento da RTP, este estaria na Contribuição para o Audiovisual, que é paga na fatura de eletricidade de todos os portugueses, sejam ou não proprietários de uma televisão. Compense-se ou não a perda no Orçamento do Estado, a RTP fica hoje menos autónoma. Quem celebrou? A concorrência, ou seja, os operadores privados.

Sobre a profissão jornalística, surgem as medidas mais bizarras. Ao invés de uma revisão da desatualizada Carteira Profissional de Jornalista, por exemplo, optou-se por outro clássico da governação portuguesa: subsídios  à contratação de jornalistas num momento em que já os atuais estão insatisfeitos com os seus rendimentos. Entretanto, a rápida transformação de toda a economia do conhecimento por via da emergência da Inteligência Artificial (IA) continuará a acelerar, mudando todas as atividades que trabalhem com conhecimento. Em nenhuma destas atividades afetadas se vislumbra a necessidade futura de contratação de mais profissionais. Não será diferente para o caso do jornalismo, algo que talvez seja descoberto durante a implementação da medida 17, as ‘’formações para jornalistas na área Digital\Inteligência Artificial’’. E mesmo neste ponto não cabe ao Estado capacitar jornalistas para ferramentas de trabalho. Cabe, sim, às empresas que os contratam. Como cabe ao Estado fazê-lo para a sua administração, e não a de outros.

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O mais surpreendente é a menção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) por duas vezes em todo o documento. Nos últimos anos, vimos interferências inexplicáveis na liberdade editorial pelas mãos da ERC. A recente deliberação sobre a entrevista a Marta Temido na RTP, sustentada numa interpretação já desmentida dos factos, é uma ingerência direta na liberdade jornalística que não é aceitável num regime de imprensa livre. Ainda outra, em 2022, saiu a favor de André Ventura, que se havia queixado de não ter sido convidado para um programa humorístico. É estranho o país onde um líder político pode exigir a um regulador a presença em talk shows. Hoje, isso é normal. Uma reforma séria do setor deveria começar por dizer que não, não é normal que isto aconteça.

Onde o trabalho de um regulador seria fundamental, nada aconteceu. A polémica em torno da catástrofe financeira na Global Media deu-se, em parte, por incapacidade legal da ERC de fazer ‘’uma avaliação tanto de titulares de órgãos sociais como de titulares de participações’’, conforme admitiu Carla Martins, vogal do seu Conselho Regulador. Enquanto regulador do setor, faria sentido que tivesse feito esta mesma avaliação de forma atempada. Este seria o momento do governo reforçar os poderes da ERC enquanto supervisor de um mercado suscetível a agendas obscuras e até a influências hostis, retirando margem às conhecidas interferências na liberdade editorial. Não foi dada nenhuma indicação nesse sentido.

No fim de contas, o governo limitou-se a esbater as linhas que separam a comunicação social dos governos, não apontando para melhorias regulatórias concretas onde elas eram necessárias, nem conferindo mais ferramentas aos jornalistas, seja por via da liberdade nos modelos de negócio, seja por via da regulação específica da sua profissão. É importante entender que hoje este risco é generalizado nas democracias. O duplo choque da queda de receita da imprensa e da pressão sentida pelos governos face ao crescimento dos populismos são o clima perfeito para um processo de rápida aproximação dos dois.

Talvez fosse uma questão de tempo. A pressão nas democracias por ação no setor da comunicação social não é um fenómeno recente e a tentação política tem sido crescente. Ao longo dos últimos quinze anos, houve uma diversificação estrondosa das fontes de informação (e também de desinformação) dos cidadãos. Hoje, com a emergência das grandes plataformas digitais, as narrativas escapam cada vez mais ao controlo dos media tradicionais, que muitas vezes se limitam a segui-las. Como resultado deste processo, assistimos a uma brutal compressão das receitas publicitárias das empresas detentoras de órgãos de comunicação social. Em Portugal, o problema é pior na medida em que um mercado interno pequeno, com pouco rendimento disponível e fracos hábitos de consumo de imprensa não permitem um sistema mediático mais robusto. A imprensa precisa de se reinventar. Se a iniciativa não for própria, serão os  governos a ceder à tentação de intervir.

E sobre isso, restam dois avisos. O primeiro é que a transformação do setor mediático continuará em aceleração. Este é um problema do modelo de negócio e os governos não dispõem de mecanismos adequados para o resolver. O outro é o de que a proximidade excessiva entre governos e comunicação social nunca correu bem, sendo catastrófica quando a autonomia dos media cai nas mãos erradas. Esse é um risco que podemos evitar. Num tempo em que as mãos erradas nunca tiveram tanta influência, não seria má ideia pensar duas vezes.