Francisco Lucas Pires não andou à procura de consensos vazios ou de matar saudades. Criou aquilo que poderíamos chamar de terceira via da direita ao lançar as bases, ainda actuais, de uma direita que deixou de ser meramente reactiva, abraçando o jogo democrático e a sua identidade própria. Não era uma questão de agradar; era a mais natural das direitas, porque era também filha do projecto democrático ocidental. E pouco tinha a provar, pois a sua tradição pertencia ao mundo com o qual Portugal sonhava convergir.

A direita portuguesa, com o derrube do Estado Novo e o conflagrar do PREC, viu-se presa entre dois instintos reactivos: o do abraço patético, para agradar ao novo poder, e o do ressabiamento, que virou as costas a tudo o que se seguiu ao golpe de Estado. Três momentos foram, na sua história, decisivos: a vitória da Aliança Democrática, o programa de Ofir e a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva. A primeira foi um dos casos, agora cada vez mais escassos, onde a linguagem política assume directamente o substrato doutrinário e aspiracional que a sustenta. A Aliança não se denominava ‘’Democrática’’ num mero acto de subscrição do projecto democrático. Antes, simbolizava a aspiração de uma maioria que não tinha ainda visto a implementação plena dos fundamentos da democracia liberal – chamem-lhe burguesa – contra um espaço público ainda repleto de um linguajar sovietizante, onde as alternativas eram encaradas como meras bastardas de uma nova era.

A ela segue-se animicamente o grupo de Ofir, liderado por Francisco Lucas Pires. Este intensifica o mesmo trabalho de pensamento alternativo ao socialismo português, reafirmando o papel central da Europa, da democracia e da abertura económica na fundação do Portugal moderno, ‘’a caminho da sociedade aberta’’. O documento é claro nas suas primeiras linhas: muito mais do que um documento não socialista, declara a necessidade de uma sociedade liberal tout court. O conservadorismo, decorrente da consciência histórica que o percorre, reconhece as traves mestras da cultura e identidade portuguesas, não esquecendo que a um dos primeiros povos da globalização pertence uma tradição ‘‘aberta, tolerante e imaginativa’’, imersa nos valores cristãos que, ao contrário de a ferir, a possibilitaram.

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O espírito que atravessa o programa é dúplice: o reforço da autoridade do Estado, em paralelo com a libertação das diversas áreas sociais. Ao Estado cabia assegurar as áreas chave de soberania: defesa, justiça e segurança. Nas restantes áreas, pede-se uma ‘’harmoniosa colaboração’’ com o sector privado, cingindo-se o Estado no apoio às infra-estruturas. O cheque-ensino é o pilar fundamental da educação; na segurança-social, pedia-se o modelo de capitalização e sublinhava-se os problemas futuros do sistema monolítico português; por todo o lado, repete-se incansavelmente a importância da liberdade de escolha. A liberdade económica é, afinal, um dos ingredientes essenciais na realização da democracia. O caminho da convergência com a europa passava necessariamente por uma nova economia, sobre a qual o CDS falou, na altura, sozinho.

O CDS de Lucas Pires conseguiu, assim, encarnar na sua acção política um facto incontornável: a democracia liberal e representativa, ela própria marca do projecto europeu e das aspirações da maioria dos portugueses, era também património da direita, não da que se limita a escolher um lado do hemiciclo, mas daquela enformada pela tradição liberal e conservadora, então dominante por todo o mundo ocidental – dos conservadores ingleses aos democratas-cristãos alemães. O país encontrou nela um dos melhores intérpretes do regime a que aspirava. A esquerda deparava-se assim com o óbvio dilema de não poder ostracizar, por via da linguagem revolucionária, aqueles que acompanhava organicamente o movimento democrático. Foi esta a génese de uma liderança política respeitada nos dois lados do espectro: franca, corajosa, optimista e, acima de tudo, natural.

Eleitoralmente, os frutos do projecto não foram os desejados. A ele seguiu-se a década de Cavaco Silva, que conheceu ainda algumas vitórias; seja na urgente liberalização da imprensa, seja na modernização económica ou na capacitação de Portugal para a entrada no Euro, acabou por concretizar parcialmente, para não dizer insuficientemente, algumas das aspirações da direita democrática. No entanto, o prognóstico, já em tons de diagnose, é já explícito no prefácio de 1988 do Objectivo 92: ‘’Talvez fosse mesmo chegada a altura de reabilitar a «política» como força colectiva de projecto para melhor vencer esse desafio [da convergência europeia]’’. Pois ‘’se a estratégia de «enganar» o sistema com a aparência da neutralidade técnica passou até agora, os seus resultados são, no entanto, em princípio, limitados, senão reversíveis.’’ Nos anos seguintes, poder-se-ia ter mantido inalterado.

Convém, no entanto, fugirmos à tentação de atribuir a este resultado a qualidade de uma ‘’direita possível’’. O termo ‘’possível’’ encerra não um facto sobre a capacidade da direita, mas sobre a hegemonia da esquerda. Alude, sim, a uma outra possibilidade, essa bem mais desconcertante, tanto para os ‘’possíveis’’ como para a esquerda: a de uma direita que encerra em si uma alternativa simultaneamente profunda e não revolucionária. Sem saudade perdida nem consolo situacionista. Essa era a direita possível de Francisco Lucas Pires. As restantes ou não eram possíveis ou não eram de direita. E esse é o maior legado de Lucas Pires: o de um liberalismo conservador português, capaz de erguer horizontes próprios, de olhos postos na construção e no aprofundamento de um Portugal liberal, democrático e europeu.