1 O Estado Português: Doente Bipolar?

O investimento público suscita sempre sentimentos contraditórios na nossa classe política pois são importantes para difundir a esperança ou ilusão nos cidadãos sobre a melhoria da sua vida futura mas, pelo contrário, tendem a implicar reduzir despesas públicas de funcionamento as quais também são essenciais para manter as suas clientelas em melhores condições. Talvez esta contradição explique a doença polar alternando estados de euforia sobre nova onda de mega-investimentos públicos tal como aconteceu em 1995 e 2005 contrastando com estados de depressão (tanga ou banca rota) ocorridos em 2002 e 2011 pelo que será previsível em 2024/5 regressarmos à euforia se admitirmos que esta doença bipolar é estável.

Nos períodos de euforia importa que ninguém discuta prioridades e a própria comunicação social costuma contribuir para esse silêncio. Convém notar que o impacto comunicacional destas iniciativas implica o prefixo Mega independentemente do setor, exemplificando-se com a Mega nova ponte rodoferroviária, o Mega novo hospital de Lisboa, a Mega nova rede do TGV, o Mega-Hub aeroportuário, nova Mega rede de estádios, e assim sucessivamente. Recordo-me de autarca que me dizia não ter dignidade ir inaugurar nova estrada se não tivesse quatro vias e separação de sentidos o que, aliás, deve justificar sermos dos países em que menos estradas com 2 vias se constroem.

Em suma, o desafio para a magia da política consiste em criar a ilusão de que conseguimos fazer todos os investimentos públicos e sem custo! Para tal têm-se inventado três tipos de ilusionismo político com persistente sucesso desde que o ilusionista seja qualificado.Na verdade, quem não acredita sempre no número da multiplicação dos coelhos quando o mago é excelente?

2 Que Tipos de Ilusionismo ?

  • Os apoios comunitários
    Desde a década de 90, temos vindo a beneficiar de milhares de milhões de euros em apoios comunitários pelo que se difundiu a ideia: finalmente temos investimento público sem custo! Todavia, a realidade não é essa pois exigem contrapartidas nacionais e exigem sistemas de planeamento, projeto, contratação e execução eficientes e eficazes os quais implicam melhor gestão pública e quadros qualificados o que tem custos apreciáveis. Aliás, convém esclarecer o equívoco que tem vindo a divulgar-se de o PRR ser mais um outro programa de apoios cedidos pelos mais desenvolvidos aos restantes. Pelo contrário, é programa que a todos beneficia e que se baseia em dívida contraída pela UE a qual terá de vir a ser paga  por todos, ou seja, também por nós.
    Infelizmente, a nossa curva de aprendizagem não tem ocorrido pois tomo a liberdade de recordar que fui Gestor do Prodep (1) completando-o em 1992 com execução próxima de 100% e o elogio do então Comissário Millan da Comissão sobre a boa execução do programa enquanto que a execução do atual PRR ainda ronda cerca de 20%.
  • Os custos “nulos”
    Este argumento é muito importante para ajudar a viabilizar qualquer Mega investimento e implica considerar nulo o custo de todos os bens, direitos ou receitas que se percam desde que não haja aumento de despesa. Talvez os melhores exemplos venham das decisões sobre o novo aeroporto de Lisboa. Assim, o campo de tiro de Alcochete que é considerado por todos bem muito valioso, designadamente pelas suas condições eexcecionais e a sua raridade na Europa a qual vive, infelizmente, o desafio da guerra, passa a ter custo nulo se for utilizado para novo aeroporto, e a perda de receitas inerentes ao infeliz contrato de concessão com a ANA, também não tem custos públicos pois é — apenas — perda de receitas.
  • O mega projeto “ paga-se a si próprio”
    Esta ilusão é muito potente e corresponde a criar cenários muito otimistas sobre a  utilização futura do investimento e a admitir que existem investidores privados interessados em serem contratados para o executar e beneficiar dos pagamentos feitos pelos seus utilizadores.O problema é que os investidores privados são cautelosos e exigem cláusulas contratuais generosas para os protegerem de quaisquer riscos do mercado.
    O melhor exemplo será o das SCUTS, disseminando as vias rápidas mas existindo ainda hoje cerca de 40% sem tráfego que as justifique. Por outro lado, ficando o risco do lado do Estado, os contratos ficam sujeitos à Diretivas dos contratos públicos, designadamente das de 2014, e os encargos contam para a dívida pública.

3 A importância do Investimento Público: Liberalismo e Socialismo Lusitano

Infelizmente, com tantas mega-ilusões, a realidade tem sido Portugal ser na UE um dos países com menor investimento público executado, frequentemente aquém dos 3 %  e, mesmo em termos globais de investimento, o valor do stock do capital líquido está a diminuir na última década tal como se demonstra em (2, págs 120 e 121) o que nunca tinha acontecido e inviabiliza melhorias da produtividade, limitando gravemente as nossas possibilidades de desenvolvimento.

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Ora é interessante referir que Adam Smith nas sua famosa obra (3), consagra um capítulo a uma das três missões principais dos Governos e que consiste no investimento público nas infra-estruturas, referindo que “The third and last duty of the sovereign or commonwealth is that of erecting and maintaining those public institutions and those public works, which, though they may be in the highest degree advantageous to a great society” (Livro IV, Cap 1) e recomenda a aplicação do princípio do utilizador-pagador, quando se justificar, mas acrescenta que o investimento deve ser público até porque se consegue menor taxa de juro para a dívida pública do que para a privada e ainda porque não deve ser entregue a terceiros, “trustees”, pois “Government, it has been said, by taking the management of the turnpikes into its own hands, ….,could keep the roads in good order at a much less expence than it can be done by trustees”.

Curiosamente, também aborda o problema dos mega projetos ao lamentar-se que “a proud minsiter of an ostentatious court” terá mais facilidade em executar “a work of splendour and magnificence” do que “great number of little works” as quais serão “entirely neglected” parecendo já antecipar o desinteresse nacional por hospitais públicos de proximidade (o único em construção é de iniciativa municipal) ou pelas melhorias da rede ferroviária inter-cidades. Enfim, nem sabia o nosso estimado escocês o que estava para vir!

Os pensamentos social-democrata e socialista também têm defendido a importância do investimento público e a terceira via de Giddens e Blair sempre insistiu na inalienável responsabilidade do Estado, face a novos modelos de colaboração entre os setores público e privado, no que respeita ao seu controle e financiamento (4).

Todavia, em Portugal, e talvez para garantir as três ilusões referidas, tem vindo a surgir outra tendência a qual atribui aos privados o encargo do investimento público mas coloca o Estado a controlar  empresas comerciais de modo a garantir as suas “missões estratégicas” podendo dar-se como exemplo as ideias defendidas em meios socialistas  e que são entusiastas do Mega-Hub de Lisboa financiado por privados mas mantendo a TAP como empresa pública.

O problema é que esta corrente de “socialismo lusitano” com o Estado a gerir empresas comerciais e os privados a controlar os investimentos públicos consegue o pior de dois mundos: descalabro na gestão empresarial e  maior preço a pagar pelos investimentos públicos devido às maiores taxas de juros e prémios de risco a suportar pelos privados.

  1. Declaração de interesse: o autor foi gestor do Proodep de 1988 a 1992.
  2. L Valadares Tavares e J César das Neves, 2023, “ Portugal: Porquê o País do Salário Abaixo de Mil Euros?”, Dom Quixote
  3. Adam Smith, 1776, “Na Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations” re-editado em 1994 pelo Liberty Fund e disponível nesta ligação.
  4. Antony Giddens, Ed.,2003, “ The Progressive Manifesto”, Blackwell.