Costumo gozar com os meus amigos jornalistas sobre notícias de calor no Verão e chuva no Inverno. Portugal é, de facto, um país de permanentes surpreendidos, chocados e desprevenidos. Imaginem que no Verão passado, o SEF e os serviços da ANA foram apanhados de surpresa com a chegada de passageiros ao Aeroporto de Lisboa, em plena época alta. Quem esperaria que num aeroporto pousassem aviões e, de lá de dentro, saíssem pessoas de muitas nacionalidades empunhando passaportes? Mesmo que todos os voos estivessem marcados há pelo menos seis meses… E isto espelha, de forma plena, o desplante e facilidade com que se sacode a água do capote em Portugal.

E é nesse estado de permanente espanto e desresponsabilização, que abrimos todos a boca perante as reportagens do “nunca tinha visto nada assim”, sempre que o São Pedro decide mais ou menos cumprir a sua “job description”, fazendo calor ou chuva.

Não sou um negacionista das alterações climáticas nem finjo que não há dias em que chove muito. Mas uma coisa é sabermos que o clima nos oferece cada vez mais desafios, outra é nada fazermos para os mitigar e ainda agravarmos as condições das nossas cidades.

Depois de Lisboa, esta semana foi a vez de chover muito em pouco tempo no Porto. Tal como tinha acontecido quando em pleno confinamento pandémico o Sporting comemorou, sem pudor e regra, o seu título nas ruas de Lisboa, também perante as imagens das recentes cheias na capital, o anti-centralista Porto se precipitou a dizer que “aqui não acontecem coisas dessas”. O Porto é melhor e “está bem preparado”, disseram-nos. Só que não! Num e noutro caso, o Porto despencou dessa sua bazófia e o spin foi na enxurrada.

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Mas a questão não é tanto termos de assistir a discursos bairristas e provincianos que, no fundo, fazem parte da liturgia política da cidade. A questão é porquê. Por que razão aconteceu isto no Porto que nunca tinha acontecido?

Na ausência do presidente da Câmara – que ao bom estilo Luís Montenegro ou não estava ou não quis estar – lá veio o vereador “sobrevivente designado” alvitrar, em direto nas TVs, algumas explicações que apontaram as culpas, por palpite, para uma obra da Metro do Porto. “Por razões que ainda não percebemos, o Rio de Vila correu à superfície”, disse.

Enquanto tentava culpar sem fundamento a Metro do Porto, que mais não está a fazer do que construir uma linha e estações defendidas e licenciadas pela Câmara a que pertence, o jovem político municipal em substituição do presidente, parecia ignorar que, a três quilómetros dali, despencavam entre as monumentais pontes de Luiz I e Dona Maria, umas ainda mais monumentais cataratas. Só que, ali, já n\ao era a primeira vez e não há nenhuma obra da Metro a decorrer.

Na verdade, o que há em comum, num e noutro local – Mouzinho da Silveira e Bonfim – não são obras do Metro a decorrer. O que há em comum é a absurda impermeabilização dos solos e as catastróficas intervenções camarárias no espaço público e no subsolo, com uma cada vez mais intensiva ocupação de terrenos, como pouco depois ouvi vários geólogos, geógrafos e até o Ministro da Administração Interna justificarem nas rádios e TVs.

Em Mouzinho da Silveira, importa lembrar que desde 2018 que a Câmara Municipal iniciou uma obra no subsolo naquele exato local. Sabem todos os portuenses que lá passam que há quatro anos, que ali foram instalados os estaleiros dessa obra, quer em frente à estação de São Bento quer junto ao Largo de São Domingos. Ora, essa obra nada tem a ver com a Metro do Porto. São, como uma pesquisa no website do Município pode esclarecer, obras municipais, visando transformar o Rio de Vila, que corre debaixo de Mouzinho da Silveira, num museu(!). É certo que em quatro anos a Câmara não conseguiu fazer o museu, mas a intervenção parece ser uma pelo menos tão boa teoria para o que aconteceu este sábado, como as obras do Metro.

Por alguma razão havia ali o leito de um rio e por alguma razão, depois da intervenção da Câmara que achou que um rio podia ser um museu, a água veio pela primeira vez à superfície. Se a causa foi uma ou outra, na verdade, não sei dizer. Mas sacudir a água do capote contra a Metro, sem mais, é no mínimo precipitado e pouco avisado, pois não há maior “cúmplice” das intervenções do Metro que não seja a Câmara.

Já quanto às cataratas da marginal, fenómeno que surgiu apenas nos últimos dois ou três anos, é preciso que se saiba que a Câmara do Porto gastou vários milhões de euros naquele local.  “Primeiro na Avenida Gustave Eiffel, em 2014, depois na consolidação da escarpa por onde caem agora as novas cataratas e que diariamente se desfaz. E também interveio mais acima, junto ao Campo 24 de Agosto, onde, nos últimos anos a Câmara do Porto desviou, de forma subterrânea, um curso de água, prejudicado pela estação de Metro que no início do Século ali foi instalada. Quem vive em Santos Pousada ou Fernandes Tomás sabe do que estou a falar.

Mas não só. No mesmo Campo 24 de Agosto, o Estado era dono, ainda há muito poucos anos, do único terreno ainda permeável na zona e onde funcionava um parque de estacionamento à superfície. Ora, não apenas o terreno foi vendido a privados como rapidamente para ali se licenciou e construiu em tempo recorde um Hipermercado Continente, com direito a parque subterrâneo, num processo de completa impermeabilização do solo.

Simultaneamente, a mesma Câmara do Porto decidiu gastar mais cinco milhões a asfaltar, de alto a baixo, incluindo passeios, a Avenida Fernão de Magalhães, transformando uma rua comercial, numa espécie de auto-estrada sub-urbana, que serve de funil para as águas, tudo em direção ao mesmo Campo 24 de Agosto…

E, assim, a água que outrora ia encontrando por onde se escoar e às vezes até ia para ao Metro, vai hoje em direção à nova atração turística do Porto: as cataratas da marginal, onde destrói todo o investimento de consolidação da marginal e da escarpa anteriormente pago pela Câmara. Há pouco mais de uma semana, foi preciso evacuar um hotel, entretanto também licenciado e construído na marginal.

Sem aprender com esses erros, os do passado e os do presente, neste momento decorrem obras de instalação de mais três estações de Metro no Porto, além da de São Bento que ontem vimos inundada. Uma junto à Casa da Música, outra debaixo do jardim da Praça da Galiza e uma terceira no jardim do Carregal. Podem plantar umas coisas verdes por cima, no final, mas nada disso impedirá a impermeabilização daqueles três espaços verdes, tal e qual aconteceu no Campo 24 de Agosto no início do Século… Tomem nota, para que dentro de alguns anos não estejamos todos de boca aberta outra vez a culpar São Pedro e o diabo por algo que estamos neste momento a construir.

Por razões profissionais ou por gosto, visitei nas últimas décadas muitas cidades europeias. Fui várias vezes a Berlim e assisti às transformações realizadas no centro da cidade, onde não ocorreu à S-Bahn ou à U-Bahn construir estações debaixo do Tier Garden. Ao invés, construíram debaixo das ruas, como agora aconteceu na Unter den Liden, evitando impermeabilizar o que são os seus espetaculares espaços verdes que, aliás, se dividem não apenas em pequenos ou grandes jardins públicos, mas também nos interstícios da cidade e dos seus blocos habitacionais.

Quem viu as cidades europeias há 10 ou 15 anos e hoje as visita, encontra também enormes evoluções no espaço público. Mais ruas empedradas, grandes zonas pedonais, menos carros, mais meios suaves, mais árvores e zonas verdes, mais e melhor arquitetura moderna em zonas de expansão vertical, preservação dos centros históricos com o espaço público reabilitado e tratado, melhor e mais frequente transporte público. N\ao há cidade que visite que não tenha feito nos últimos 10 anos esse percurso.

Mas no Porto, além da crescente impermeabilização dos solos, do derrube de árvores e da destruição de pequenos jardins privados, tudo devidamente permitido por um PDM cada vez mais amigo do “investidor”, os poucos espaços verdes públicos estão a ser impermeabilizados através de estações subterrâneas. Se a estação do Campo 24 de Agosto é um erro antigo, agora agravado com decisões municipais desastrosas, poderia, pelo menos, ter-se pensado o traçado das novas linhas protegendo os únicos espaços verdes no seu caminho.

Mas o mais confrangedor é a total ausência de reabilitação urbana do espaço público no centro da cidade. Ao contrário do garantido pelo candidato independente a que em 2013 me juntei numa campanha surpreendentemente vitoriosa, que prometia reabilitar o espaço público, pois isso impulsionaria de 1 para 10 o investimento privado, não se reabilitou ou pedonalizou, em quase 10 anos, uma única rua no centro histórico. Nem existe qualquer plano para o fazer, o que levanta até a questão de como são feitos os estudos de procura das novas linhas de Metro, desconhecendo-se o futuro da mobilidade da cidade.

As agora destruídas Mouzinho da Silveira e Flores foram as últimas a ser intervencionadas, em obras ainda lançadas por Rui Rio. E desde aí, zero. A Câmara do Porto não pedonalizou uma rua, não reconverteu o espaço público, não o qualificou, não o protegeu e não o planeou. Não gastou o tal euro que impulsiona 10, nem sequer em torno das suas grandes obras de regime, como o Bolhão. É confrangedor percorrer Sá da Bandeia, ao lado dessa grande obra de reabilitação ou ir um pouco mais ao lado, a Santa Catarina e suas afluentes, onde reinam florestas de pinos e estrados a fazerem de paragens de autocarro.

E fora do centro histórico o que houve foi a condenação de vias como a Avenida Fernão de Magalhães ou a Rua da Camões ao modelo sub-urbano datado do asfalto, dos pinos, dos passeios estreitos, do estacionamento.

Falo do Porto, porque conheço melhor. Mas não creio que possamos dizer de Lisboa e das principais cidades portuguesas muito diferente. Depois de saltos civilizacionais que ocorreram no final do século passado e início deste século, com uma melhoria decisiva do transporte público e das redes de Metro, com alguma reabilitação urbana e com algum arrojo, as nossas cidades pararam no que diz respeito à requalificação urbana e à qualificação do espaço público, em contraciclo com o Mundo.

Há dias estive em Bilbau, cidade de dimensão semelhante ao Porto. Era, há duas décadas, uma cidade desgraçada. Sem gente nas ruas, perigosa, suja, feia e mal estruturada. Mas hoje poderia servir de modelo aos autarcas portugueses, pela exemplar qualificação do espaço público, pela arquitetura coerente, promoção dos espaços verdes e pedonais, zonas de expansão vertical, através de arquitetura contemporânea e de novos autores. E estamos a falar da 9ª ou 10ª cidade de Espanha…

O Porto é uma cidade cheia de coisas boas. Das pessoas ao seu património. Obras como as da Metro ou do Bolhão são, seguramente, muito importantes e até historicamente importantes. Nem tudo está mal feito e nem tudo foi mai na governação de Rui Moreira, de quem fui assumidamente “cúmplice” durante sete anos e que sou capaz de elogiar e defender em vários aspetos. Mas a gestão do urbanismo e da cultura, dois pilares da sua anunciada governação em 2013, é um desastre e para mim uma enorme desilusão e tristeza. Porque é no urbanismo que está o principal poder de um Município e porque é o urbanismo o motor da mudança de uma cidade ou a mais rápida e fácil forma de matar tudo o resto. Nem que seja por afogamento.