Desde há muitos anos que o Serviço Nacional de Saúde anda para ser salvo. Compreensivelmente, ainda não foi salvo – porque não tem salvação.
Há uma ideia mal estruturada de que o SNS se encontra afectado por um mal de natureza indefinida, de aparecimento também impreciso e que, apesar de tratamentos agressivos com doses elevadas de dinheiro, se tem agravado até ao estado agónico actual. A única certeza é que tudo isso sucedeu depois de um período em que SNS foi um dos melhores do mundo e, portanto, sem que nada o fizesse prever.
Não existe nenhum diagnóstico minimamente assertivo dos problemas que afectam o SNS. Tem sido assumido, com critérios de oportunidade e gostos sazonais, que é a falta de financiamento, a falta de profissionais ou, mais recentemente e a contragosto, a falta de organização.
1. Não há falta de financiamento. A injecção maciça de dinheiro no sistema não lhe acrescentou mais qualidade. Era, é, apenas a solução mais fácil, porque poupa os responsáveis a raciocínios mais elaborados e dá uso ao dinheiro que tem continuado a fluir da Europa.
2. Não há falta de profissionais, nomeadamente de médicos. Essa possibilidade, preferentemente evocada em altura de férias, permite ademais outra solução preguiçosa e a designação de um culpado – a culpa é da Ordem dos Médicos e a solução é fabricar mais médicos. Não é verdade nem é solução. Os racios de médicos por habitantes continuam acima de médias consensuais e os médicos que vierem a ser formados escolherão, como hoje já escolhem, não ficar no SNS. Tendo em conta os elevados custos da formação de um médico, essa será apenas uma maneira de guardar dinheiro num saco roto.
3. A falta de um modelo organizativo flexível e racional é proposta mais recentemente como causa da deterioração do SNS, embora a uma cadência, e com ênfase, menos vigorosos. Realmente, a admissão de que o SNS precisa de organização fere o credo benigno de que um dia foi perfeitamente organizado e que assim continuaria a ser pela natureza imutável da perfeição.
Desde o seu primeiro dia que o Serviço Nacional de Saúde apresentava todos os sinais do que viria a ser um crescimento trepidante, uma maturidade presunçosa e, no devido tempo, uma velhice feia e patética. Quem viu então que assim era, não quis ser profeta antes do tempo – o que, segundo se sabe da história de muitos profetas, poderia originar a sua crucificação sem que daí resultasse qualquer benefício.
Hoje, manter o mesmo silêncio, embora um silêncio cada vez mais ocupado com alusões ainda muito cautelosas a pequenos e incidentais problemas do sistema, não é útil. Há um exagero de estilo afirmar que o SNS não tem salvação. Ficou dito para salientar que um novo SNS não pode ser inteiramente o antigo, precisará que componentes novas e de outros organismos nele sejam transplantadas.
Alguns erros de concepção foram cruciais. Apenas esses:
Um SNS tendencialmente gratuito era um mau prenúncio, e quando evoluiu para preferentemente gratuito tornou-se desastroso. O SNS não tem que ser tendencialmente gratuito, seja lá o que isso queria dizer no jargão (pouco) hermético da época. O SNS tem que ser gratuito, inteiramente, para quem não puder suportar um mínimo de contribuição para o sistema. Não pode ser gratuito para quem puder, dentro dos limites dos rendimentos declarados, contribuir com percentagens ponderadas do custo do serviço que lhe é prestado. Esta não é apenas uma modalidade de financiamento do sistema – será sempre muito subsidiária, mas é uma delas – é sobretudo um processo de responsabilização dos utentes e um meio eficaz de reconhecerem valor no serviço que lhes é proporcionado. O custo zero de qualquer serviço, particularmente se fôr muito relevante, é um mau conselheiro da cidadania – qualquer operador de caixa de supermercado foi informado disso antes de começar a cobrar 5 cêntimos por um saco plástico. O mantra que acompanha a defesa da gratuitidade do SNS é que “a saúde não tem preço”. As pessoas que ouvem inanidades na televisão gostam em particular dessa mas, como já foi dito exemplarmente, a saúde tem preço, é muito cara.
O SNS foi implementado num ambiente que deve ser qualificado de sã camaradagem – com todas as implicações dos conceitos. Foi acolhida a opção de que todos os médicos eram iguais: na sua competência, nas suas qualidades humanas, no seu profissionalismo. Exerciam medicina mais ou menos em comunidade e recebiam todos uma remuneração igual, não muito grande porque não deviam ser privilegiados num país que já começara a delapidar recursos e onde, foi dito, se pretendia acabar com os ricos. O SNS, ao mesmo tempo que se propunha resolver os problemas de saúde das pessoas, ou até antes, resolveu, indiscutivelmente, os problemas dos recém licenciados em Medicina. Permitiu a sua integração imediata numa carreira médica e sublinhou o carácter cívico, até revolucionário, dos cuidados de saúde. Não criou a noção de carreiras médicas, abriu as suas portas. Ainda hoje se mantém o preconceito original de que todos os profissionais são iguais e trabalham alegremente para o bem do povo.
Eram expectáveis as consequências desastrosas dessa convicção delirante. Muito depressa se viu que há profissionais, médicos e outros, que têm menor expertise, têm qualidades pessoais pouco aptas a lidar com o sofrimento dos outros (esta é uma figura de estilo que hesita entre o eufemismo e a antonomásia), têm dificuldade em assegurar uma assiduidade suficiente (eufemismo, apenas). Porém, a remuneração de uns e outros era, sempre foi e continua a ser, igual.
Não é verdade que os médicos, ou os enfermeiros, seja quem fôr no SNS, ganhe pouco. Muitos desses profissionais ganham, de facto, indigentemente. Mas há outros que ganham ordenados principescos, atendendo ao que dão ao SNS. Não se trata de despedir metade e pagar o dobro aos outros, como foi dito noutro contexto e com exagero exemplar, mas é necessário instalar no SNS a meritocracia. Não será fácil, porque a meritocracia tem sido vilipendiada sob a acusação de optimizar as oportunidades de quem já teve muitas com prejuízo de quem teve poucas. Mas as oportunidades aproveitam-se, ou não, e a prática tem demonstrado que o desprezo pela meritocracia pode ser o expediente de eleição para promover a falta de qualidade individual e o apodrecimento das instituições (sendo que as universidades são o mais dramático dos exemplos, mais do que a saúde)
Os doentes querem um médico, se possível escolhido por eles depois de ouvirem conselhos de outros doentes e dos vizinhos. Não gostam de ser utentes de um sistema. Uma organização adequada deve permitir que isso seja gradualmente possível. A relação médico-doente e a efectividade do acto médico ganharão enormemente. Será, para além disso, um dos mecanismos de escalonamento dos profissionais segundo a sua produtividade e adequação ao sistema. O SNS nunca foi humano na sua essência. A humanidade é oferecida aos doentes que têm a sorte de calhar com um profissional que tenha qualidades para tal e não esteja excessivamente cansado. Se o doente não tiver essa sorte poderá ter que se lamentar durante vários anos.
Um Serviço Nacional de Saúde de responsabilidade estatal é absolutamente indispensável para a gestão de situações ou estratégias de âmbito nacional. Mas não pode monopolizar as cirurgias dos joanetes nem o tratamento das sinusites secas e húmidas. A absorção total de todas as responsabilidades assistenciais, com a correspondente centralização administrativa, teria de conduzir à lentificação, à estagnação, à desresponsabilização e ao desperdício. E foi isso que aconteceu.
Um SNS deve ser sobretudo um serviço do Estado vocacionado para políticas nacionais – definição de áreas de actuação prioritárias, vacinação, transplantes… – e para uma prática clínica exaustiva e concorrencial com outros sistemas.
Um SNS deve assegurar através do Estado, que funciona como seu accionista isento, a regulação de todos os agentes na área da saúde: o SNS e todos os outros. Deve assegurar uma estratégia de autofinanciamento parcial que não exclua nenhum cidadão, não se pode assumir como um mecenas providencial e de riqueza inesgotável.
O facto de ser absolutamente indispensável um SNS – tal como existem, com desenhos diferentes, na generalidade dos países civilizados – não torna o actual SNS bom. O SNS actual não é beneficiário de uma santidade imposta no acto criador e, por esse facto, protegido por uma intangibilidade que só consente pequeníssimos remendos. São muito graves os problemas do SNS: mais de 1 milhão de pessoas sem médico de família, vários milhões insatisfeitos com o atendimento que têm, atrasos eventualmente irreparáveis em consultas e cirurgias, uma opção crescente por seguros privados de famílias muitas vezes no limite do conforto financeiro, uma tensão crescente na relação entre doentes e agentes de saúde.
Não é sensato continuar a ignorar o ambiente na saúde – nas perspectivas assistencial, humana e financeira. Os argumentos aduzidos em favor da bondade do actual SNS são vários, e têm sustentado a abstenção de medidas profundas ou mesmo a inacção. Mas são pouco convincentes.
É abusivo dizer que o SNS tenha sido um contribuidor singular e notável para o progresso extraordinário no nível de cuidados médicos. Os avanços sanitários, técnicos e terapêuticos nas últimas décadas não têm paralelo em qualquer outro momento da história, e era obrigatório que o SNS os incorporasse. Diversas áreas consideradas virtuosas beneficiaram de políticas não recentes. A saúde materno-infantil, cujos índices são considerados indicadores de significado crítico, prolongou de maneira regular os índices pregressos – segundo dados do INE de 1950 a 1975 a taxa de mortalidade infantil portuguesa decresceu a um ritmo de 1,8% ao ano no período de 1950-1959, de 2,9% ao ano na década seguinte e de 5,8% ao ano entre 1970 e 1975. Outros indicadores, noutros eixos que comparem a evolução das estruturas de saúde desde a Primeira República até aos dias de hoje, não será feita aqui.
Na realidade, uma vez abrandado o ritmo imposto por medidas excepcionais, umas antigas e outras contemporâneas da sua fundação, e depois de cansada a disposição militante dos seus actores no terreno, o SNS começou a respirar ao ritmo da sua constituição natural. O resultado é, com toda a naturalidade, o que está à vista.
Desde há algum tempo que se tornou cada vez mais aparente uma relativa debilidade nos argumentos genéricos com se têm sustentado a fé na competência do SNS e alimentado a luta para a sua continuidade – mudando alguma coisa, de certo, mas de modo a que continue a ser o mesmo SNS. Assim, foi escolhido para exemplo um estudo de caso. O comportamento do SNS durante a pandemia COVID tem sido apontado como um sucesso e, por uma salto lógico que está errado embora conduza a uma conclusão certa, uma prova definitiva da sua necessidade. Infelizmente, o exemplo é mal escolhido. O comportamento do SNS durante a pandemia foi defeituoso, com uma excepção – a vacinação. Mas, por uma segunda infelicidade seguida, o bom desempenho nessa área não foi criação do SNS – foi possível graças à introdução do rigor militar no sistema e, mais embaraçoso, à familiaridade da população com as estratégias vacinais criadas e assimiladas, muito mais do que noutros países, no período do estado novo.
Outro argumento para sustentar o actual SNS é o seu contributo para a inovação e progresso. Não é verdade que o SNS seja percursor de inovações técnicas ou de recursos pioneiros. As primeiras “TAC”s de que dispus na minha prática hospitalar foram realizadas, depois de um percurso longuíssimo de autorizações, num laboratório privado. O mesmo aconteceu após o aparecimento da Ressonância Magnética – primeiramente proporcionada por privados. A experiência individual não é anecdotal neste caso, todos os médicos nas suas especialidades terão tido e continuam a ter experiências semelhantes.
É verdade, e isso é da máxima relevância, que o SNS é o único sistema que proporciona tratamentos de elevadíssimo custo – porque dispõe directamente de recursos financeiros orçamentados a partir da fiscalidade e porque pela sua dimensão se encontra mais bem posicionado para negociar com empresas fornecedoras. Esse será o exemplo mais ilustrativo de como é gerado um efeito de escala na área da saúde. Mas, para além disso, ilustra como é complexa e discutível a gestão de recursos públicos. O estado tem a responsabilidade de atender à doença individual, muitas vezes terrível para quem a sofre e que onera todos em somas avultadíssimas mas, igualmente, é sua responsabilidade atender a carências colectivas, igualmente chocantes, que podem beneficiar de verbas equivalentes.
É urgentíssimo “um” Serviço Nacional de Saúde como parte de um sistema de saúde que respeite as opções individuais e, sob regulação do Estado, proteja com igual zelo o bem-estar das pessoas e o erário público. É importante que a saúde das pessoas não fique entalada e se perca num cotejo solipsista e extravagante entre os enormes defeitos do antigo regime, que seriam hoje perpetuados por privados gananciosos, e as deslumbrantes qualidades do SNS, magnânimo e sem olhar a despesas. Há pessoas que saberão fazer isso com experiência e competência técnica, sem outra paixão senão a de fazer um trabalho óptimo, pelo menos decente. Com certeza que há, porque o mundo é grande.
Sou médico neurologista, trabalhei em exclusividade no SNS desde o seu início. Nunca exerci nem tenho planos planos exercer clínica em qualquer entidade privada. Acompanhei incontáveis doentes desde o primeiro dia em que adoeceram até ao seu fim. Não gostaria que o SNS fosse mais um deles.