A presença de Cristiano Ronaldo no Catar foi um folhetim excessivamente mediático, e o mito super-heróico parecia desmoronar-se aos nossos olhos. Neste Mundial, perante a sobreposição do Homem e do Futebolista, a nação quis dividir-se entre gratos e ingratos, entre competitivos e empáticos, e para ajudar tombámos aos pés de Marrocos. Mas a partir deste retângulo verde onde se faz a transição de bestial a besta em meio segundo, a caminhada solitária para o balneário de um Ronaldo lavado em lágrimas e derrotado, devia iniciar outra conversa: sabia que 38% dos futebolistas no ativo têm sintomas de depressão, ansiedade, burnout e dependência de álcool? Bons de bola, mas tão humanos quanto nós.

Estes 38% põem à transparência a particular vulnerabilidade dos futebolistas profissionais a problemas de saúde mental, sobretudo se compararmos a mesma suscetibilidade no comum mortal: segundo a OMS, em 2019 mil milhões de pessoas tinham distúrbios mentais – cerca de 13% da população mundial. Em 2022, já andamos mais perto dos 18% que outra coisa. E nós, humanos comuns, não gostamos desta matemática: um futebolista profissional, sobretudo um Cristiano Ronaldo, fantasia-nos a perfeição. Salários milionários, contratos astronómicos, mansões, carrões, tudo a troco de pontapés numa bola – é a síntese perfeita do cliché “ele tem tudo”. Um Cristiano Ronaldo é uma para-divindade, e na sua omnipotência olímpica, não lhe perdoamos falhas. E temos um secreto, matreiro e ignóbil prazer em ver uma divindade mediática, das que “têm tudo”, tombar à condição de humano. Mas que “tudo” é este que os astros do futebol têm? (porque há milhares de jogadores de futebol profissionais que tudo o que têm é um salário mínimo, e outros tantos com ordenados medianos).

Têm carreiras profissionais curtas de alta pressão, sujeitos ao risco iminente de lesão e ao escrutínio mediático e público constante, recebendo num minuto a idolatração de quasi deuses, e aos 90’ ameaças de morte pelo golo falhado. São super vedetas sem privacidade e na casa dos trinta fecham-lhes a porta do estádio na cara. Regressam à comum-mortalidade, como se a efémera passagem pelo Olimpo não lhes mexesse na sanidade.

Em anos recentes, atletas olímpicos como Michael Phelps, Ian Thorpe, Naomi Osaka e Simone Biles têm liderado o debate sobre saúde mental desportiva, e o mundo solidarizou-se. No entanto, a prevalência de sintomas de doença mental nos atletas olímpicos é de 24%, menos 14% do que nos futebolistas profissionais. A diferença estende-se a outros desportos, com o futebol a significar sempre mais doença mental que os outros desportos. Porquê? Porque é o “desporto rei”, o mais popular do mundo, aquele que faz parar a terra, cujos mundiais limpam a reputação de regimes ditatoriais de pecados. Estamos todos, sempre, a olhar para os astros da bola – que, em média, jogam 4 vezes em 10 dias.

As doenças mentais têm causas multifatoriais, biológicas, psicológicas e sociais. No caso dos futebolistas, os cientistas juntam à lista mais dois fatores à tipologia do risco: os específicos do desporto, e os relacionados com a carreira. E identificam 640 stressores específicos que potencialmente afetam a saúde mental dos futebolistas durante e na transição da carreira, que agrupam nas categorias (1) liderança e questões pessoais (adversidade do treinador, conflitos com o treinador, lidar com os media e adeptos, etc.; (2) logística e ambiente; e (3) cultura e equipa (adversidade dos colegas, falta de apoio da equipa, má comunicação, etc.). Voltando a Cristiano Ronaldo, conseguem ligar os pontos?

Na lista dos futebolistas que “têm tudo” mas que enfrentaram problemas de saúde mental severos, encontram-se nomes “insuspeitos”. Gianluigi Buffon, o eterno guarda-redes da Juventus, relatou a depressão grave que enfrentou nos primeiros anos na baliza do clube, na sua autobiografia. Iniesta, vencedor de tudo e algo mais, enfrentava uma depressão severa quando foi campeão no Mundial de 2010, na sequência de um conjunto de lesões e da morte de um amigo próximo. Rio Ferdinand, glória do Manchester United, mergulhou na depressão quando perdeu a mulher. E Jesse Lingard, de 29 anos, falou recentemente da depressão muito grave que sofreu em 2020, quando jogava no Man United: a sua mãe foi internada, ficou com os irmãos a cargo, sofria abusos por parte dos adeptos mesmo quando marcava e tentou combater os efeitos debilitantes da depressão consumindo álcool. “Têm tudo” – até as mesmas doenças mentais que nós.

Eu não sei se Cristiano Ronaldo tem problemas de saúde mental. Apostaria que sim. Está em processo de luto – que é dos stressores mais determinantes de doença mental – e em processo de transição profissional: sem clube, sem lugar cativo na seleção, sem pleno reconhecimento a adoração. Se eu queria Ronaldo no banco? Sem dúvida, não estava a jogar grande coisa, vidrado em recordes por quebrar e na urgência de fazer um Mundial épico para confirmar o estatuto de super-herói, gratidão não marca golos e não ganha jogos. Se eu admiro muitíssimo Ronaldo, o jogador e o homem? Sempre. A sua história de vida tinha tudo para dar errado, e fez-se gigante. Mais ainda o admiro quando o vejo vulnerável, em pranto, super-humano. Como todos nós. Cada vez que achar que alguém “tem tudo”, inclua problemas e falta de saúde mental na lista de propriedade, por favor.

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