O impacto das doenças orais na vida diária das pessoas é frequentemente subtil, contudo, a sua influência é efetiva e faz-se sentir nas suas necessidades mais básicas, modificando os papéis sociais. A prevalência e a recorrência dessas doenças na vida das pessoas constitui uma “epidemia silenciosa” (Direção Geral da Saúde, 2011).
A Organização Mundial da saúde (OMS), num artigo publicado em novembro de 2022 no Washington Post revela que mais de um em cada quatro adultos nos EUA – 26% – tem cáries dentárias não tratadas, de acordo com dados recolhidos pelo Centro de Controlo e Prevenção de Doenças. Além disso, quase metade (46%) dos adultos com 30 anos ou mais apresentam sinais de doença associadas à “gengiva” (gengivite e periodontite), e 13 por cento das crianças e jovens de 5 a 19 anos, apresentam cárie dentária não tratada.
Em todo o mundo, as cáries não tratadas são o problema de saúde bucal mais comum, afetando mais de dois mil milhões de pessoas (25% da população), e a doença “gengival” grave (periodontite) afeta cerca de mil milhões de pessoas, de acordo com um novo relatório sobre saúde oral da Organização Mundial da Saúde. Chamando a situação global de “alarmante”, a OMS confirma, que quase metade da população mundial sofre de doenças orais não tratadas e que essas doenças afetam mais pessoas em todo o mundo do que as doenças mentais, doenças cardiovasculares, diabetes, doenças respiratórias crónicas e inclusive doenças oncológicas.
A OMS argumenta que os cuidados de saúde oral devem fazer parte da cobertura universal de saúde, “seja gratuitamente ou a um preço que as pessoas possam pagar”, acrescentando que muitas pessoas não têm acesso aos cuidados dentários necessários. Os especialistas em saúde bucal geralmente recomendam visitas ao dentista uma ou duas vezes por ano para um exame de rotina ou higiene oral, observando que o tratamento para problemas dentários diagnosticados precocemente, geralmente é mais simples e mais acessível.
Em Portugal, quatro em cada dez residentes não consultam o médico dentista ou o estomatologista há mais de um ano, revela o Barómetro da Saúde em 2021 Oral realizado pela Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), segundo o qual 9% de todos os portugueses adultos não têm dentes, especialmente as mulheres, cuja maior longevidade explica parcialmente este fenómeno.
Num ano marcado pela pandemia de covid-19, a percentagem de portugueses que não foram a consultas nos últimos 12 meses subiu quase cinco pontos percentuais, face aos valores de 2019.
Os dados do Barómetro de Saúde Oral, mostram também, que 17% dos portugueses diminuíram o número de idas a consultas de saúde oral, sendo que destes, 56,5% justificam a redução com a pandemia e 9,8% com questões monetárias. Relativamente às crianças, ainda é mais preocupante, com a percentagem de 73,4 de menores de 6 anos que nunca visitaram um profissional de saúde oral.
São várias as repercussões que estes problemas podem acarretar, fazendo consumir recursos que deveriam com vantagem estar incluídos num programa abrangente de saúde oral. Rastreios periódicos identificariam atempadamente lesões orais malignas que acabam sempre em intenso sofrimento, tratamentos extremamente onerosos e perda de vidas. Os problemas psicológicos relacionados com a aparência da própria pessoa quando tem falta de dentes anteriores, interferindo com a sua autoestima e motivando a procura de apoio psiquiátrico e de medicação auxiliar, são outro fator a ter em conta.
Apesar da saúde oral em Portugal estar inserida em insuficientes e escassos programas de cuidados de saúde primários, a maioria desses serviços de estomatologia ou medicina dentária continuam a ser prestados pelo setor privado, o que constitui, por si só, uma barreira na acessibilidade aos cuidados de saúde oral.
Trata-se de uma carência atual do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apesar de todos os avanços de que o SNS foi alvo, é importante referir que o único serviço de saúde onde não existe universalidade, além dos cuidados de saúde mental, é justamente o da saúde oral. Por outro lado temos uma vulnerabilidade dos profissionais de saúde oral, até porque a maioria dos médicos dentistas é trabalhador independente no setor privado. De facto, não existe nenhuma carreira que permita a estes profissionais estarem integrados nos quadros do SNS. Entretanto, a falta de respostas de proximidade em saúde oral tem levado à celebração de contratos de prestação de serviços entre os ACES e empresas de trabalho temporário que “fornecem” médicos dentistas, existindo hoje cerca de 135 a 150 médicos dentistas em centros de saúde, escassíssimos para assegurar estes cuidados primários.
Em simultâneo, temos um excesso de médicos dentistas, que estão a ser formados (mais de 600 por ano!) para o desemprego, subemprego e trabalho precário.
Entretanto, nos 28 hospitais do SNS com Serviços de Estomatologia, local por excelência para cuidados diferenciados, e onde os médicos estão integrados na tão desvalorizada carreira médica do SNS, existe uma esforçada população de cerca de 150 especialistas em estomatologia e cerca de 60 médicos internos da especialidade, que têm feito o “milagre” de, além de tratar os doentes internados e os doentes que apresentam problemas orais em contexto de multipatologia, polimedicação e “necessidades especiais”, ainda dar a cobertura (im)possível aos doentes que os cuidados primários não conseguem tratar, por manifesta falta de profissionais de saúde oral.
Já aqui demonstrámos que assumir o cuidado de saúde oral dos 20% mais carenciados da nossa população, ou seja o impacto financeiro dos custos laborais para a cobertura total da população abaixo do limiar de pobreza, custaria apenas 57,34 milhões de euros por ano. Será muito?
Na realidade é “muito pouco” pois a verba para a Saúde no Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2023 ascende a 14858 milhões de euros. Ou seja, estamos aqui a falar de um ridículo aumento na despesa de apenas 0,39% do orçamento da saúde. Mas infelizmente, 2023, com este OGE, parece já uma oportunidade perdida!
Como vemos, tudo pode ser modificado e articulado, basta uma boa restruturação dos meios e ir de encontro às necessidades, que estão bem estudadas.
Em Portugal este problema já deveria estar ultrapassado há muito, mas as políticas escolhidas tardam a acabar com este paradigma. À atenção do Sr. Ministro da Saúde, Dr. Manuel Pizarro, e do Sr. Diretor Executivo do SNS, Professor Doutor Fernando Araújo.