Vladimir Putin acabou mesmo por fazer o que praticamente ninguém, dentro e fora da Rússia, esperava que ele fizesse. Na madrugada do passado dia 24 de Fevereiro soldados russos entraram na Ucrânia. Cerca de 200 000 elementos das forças armadas russas foram na altura mobilizados para esta operação, sugerindo que Putin imaginava que a tarefa era fácil. Rapidamente se constatou que os meios não eram suficientes e o contingente foi, entretanto, fortemente reforçado em pessoal, equipamento e capacidades logísticas. A Ucrânia é um país grande, de facto o mais extenso da Europa excluindo a própria Rússia. Naturalmente, os russos encontraram alguma resistência. Foi até dito que encontraram mais resistência do que esperavam e que a população russófona, oficialmente cerca de 20 por cento da população total estão, no momento em que escrevo (2 de Março) muito perto de controlar as principais cidades e pontos estratégicos, como reconhecem as próprias autoridades ucranianas. A operação foi planeada para durar duas semanas e nem uma semana passou ainda. Aguardemos, pois.

Mas quem é V. Putin? Na verdade, veio da obscuridade política de São Petersburgo, de onde era natural, quando foi convidado a entrar no centro do poder russo por Boris Ieltsin, em 1999. Ieltsin tinha-se tornado no homem forte da Federação Russa na sequência do colapso da União Soviética em 1991. Mas em 1999 o seu tempo político chegou ao fim. Ieltsin, para salvar a pele, concebeu um plano simples: demitir-se e convidar Putin para o substituir até à eleição dum novo Presidente para substituir Ieltsin. Em troca, Putin poderia concorrer a essa eleição, desde que garantisse que deixava Ieltsin em paz para gozar a reforma. Pouco tempo depois, Putin foi devidamente eleito. Estávamos no final de 1999. No início de 2000 Putin instalou-se no topo do poder russo para nunca mais o largar. Tem, portanto, 22 anos de experiência a dirigir os destinos de uma potência mundial armada com seis mil ogivas nucleares, mísseis balísticos intercontinentais, bombardeiros de longo alcance e direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas. E que se estende da Europa Oriental até ao Pacífico. Seja o que for que se possa dizer sobre a Rússia do período pós-soviético, este não é um país qualquer.

Nos anos 90, não passava pela cabeça de ninguém na Rússia hostilizar o Ocidente. Pelo contrário, Putin foi o primeiro chefe de estado a telefonar a Bush, presidente americano, quando aconteceu o 11 de Setembro. O sentimento dos russos era, foi durante algum tempo, pró-Ocidental, na maioria da população.

O que aconteceu foi que os ocidentais nunca cumpriram as promessas ou corresponderam às expectativas dos russos. Pouco a pouco, sectores importantes da sociedade russa começaram a sentir-se enganados e um ressentimento começou a tomar forma, juntamente com a percepção de que os ocidentais são mentirosos e dúplices. Oficiais do exército russo nunca eram ouvidos, altos funcionários também não. A Rússia foi humilhada sem vantagem nenhuma para os interesses do Ocidente, antes prejudicando esses interesses. Por isso não tenho nenhum problema em afirmar que o responsável maior do que se está a passar hoje na Ucrânia, independentemente das taras do Putin, é o Ocidente.

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No final da II Guerra Mundial, depois da vitoria épica sobre a Alemanha nazi, o Exército Vermelho avançou até à Europa Central, incluindo uma parte da Alemanha, fazendo desta e das outras nações entre esse ponto e a fronteira russa seus vassalos. Foi o ponto alto da história da Rússia que, finalmente, se tornou numa superpotência, tendo como único rival os EUA.

Mas apesar de ser a maior nação do mundo, de ter o poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, de ter desenvolvido áreas de excelência em alguns sectores científicos e tecnológicos – exploração do espaço e armamento sofisticado, onde era líder mundial – e de ter tentado, inicialmente com bastante sucesso, espalhar a sua esfera de influência por vastas áreas do mundo, a Rússia, entretanto rebaptizada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, implodiu politicamente no final dos anos 80 do século passado, perdendo uma parte do seu vastíssimo império euroasiático, que o ducado de Moscovo (com origem na Ucrânia) tinha começado a construir, os czares depois expandiram pela força das armas e finalmente os comunistas levaram até à Europa central e àquilo que na altura se designava por terceiro mundo. A Rússia colapsou, sendo que esse colapso veio do interior do regime e não de ataques externos. Foi a mais extraordinária débacle dos tempos modernos, que ninguém conseguiu prever. E assim, de repente, a Rússia deixou de ser uma superpotência.

É difícil imaginar buraco mais fundo e mais negro do que aquele em que a Rússia caiu na década posterior ao colapso da União Soviética. Mas é fácil imaginar o desespero da sua população. A humilhação que sentiram. O orgulho fatalmente atingido. A maldição russa tinha atacado outra vez e agora não se podiam queixar de ninguém senão de si próprios. Nenhum Napoleão ou Hitler tinha invadido. Os próprios russos e o absurdo sistema comunista que tinham construído e, ironicamente, os esforços de um secretário-geral do partido comunista para reformar o sistema soviético corrupto e ineficiente é que tinham levado a Rússia ao desastre.

Entretanto, que faziam os Estados Unidos, a superpotência restante, vencedora da Guerra Fria? Bom, perceberam que, pela primeira vez na História, o mundo tinha uma única grande potência dominante. Sem rival. E eram eles. Muito rapidamente, o realismo como estratégia usado durante a Guerra Fria foi posto de lado e substituído pela teoria da Hegemonia Liberal. Ou seja, os EUA iriam refazer o mundo à sua imagem e o mundo encher-se-ia de países e regimes democráticos e liberais. Com ênfase nos direitos individuais, em eleições livres, na liberdade de pensamento e na economia de mercado. Mas como? Ninguém sabia muito bem. Pelo exemplo, talvez! E na prática logo se veria. Pois que outra Ordem Mundial era possível, após terem falhado as alternativas do comunismo, do fascismo e do nazismo, todas vencidas e, portanto, destruídas e descredibilizadas pela acção e exemplo americanos ou, se preferem, pela força e justeza dos valores Ocidentais?

Uma visão magnífica e generosa. Carregada de boas intenções. E plena de húbris. Pelo que tinha tudo para dar asneira, como deu. Entre muitas outras barracadas trágicas – Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Irão, toda a Primavera árabe, só para dar alguns exemplos – os americanos fomentaram (por inércia e ignorância de princípios básicos da geoestratégia) a actual crise na Ucrânia. Os novos países saídos do desmembramento da União Soviética tinham de aderir à NATO e à UE. Entre 1999 e 2004 nove países seguiram esse caminho. Os russos, naturalmente, odiaram a ideia, mas calaram-se, porque não podiam fazer nada. Mas quando, em 2008, na cimeira da NATO em Bucareste, os Americanos forçaram a introdução no comunicado final (contra a opinião da França e da Alemanha) de um parágrafo em que se dizia que a Ucrânia e a Geórgia (antigas repúblicas da URSS, com fronteiras com a Rússia) Putin veio dizer publicamente que isso jamais aconteceria. Um aviso forte, que os americanos escolheram ignorar. O resultado foi um ataque russo à Geórgia, aliás sem combates, porque o exército georgiano, financiado, treinado e equipado pelos EUA, desertou em massa. Em 2013, o Ocidente fomentou as famosas revoluções coloridas, a laranja na Ucrânia e a rosa na Geórgia. Houve manifestações enormes em Kiev, com dezenas de mortes e finalmente um assalto ao Palácio Presidencial. Em 22 de Fevereiro de 2014 o presidente, pró-russo e por acaso eleito democraticamente, fugiu para Moscovo. E um novo presidente, pró-ocidental, foi colocado no seu lugar. A reacção russa foi imediata. Dias depois, anexaram a Crimeia. E logo a seguir enviaram soldados para “aconselhar” os guerrilheiros russófilos que há anos mantinham uma guerra de baixa intensidade com nacionalistas ucranianos no Leste da Ucrânia, na região do Donbass. Ninguém sabe se os russos entraram nessa altura em território da Ucrânia. Mas isso pouco importa. O caldo estava obviamente entornado. E as consequências estão à vista. Tivemos – nós, os Ocidentais – todas as condições para ter hoje como vizinho uma Rússia amigável, quiçá aliada. O que daria muito jeito caso as coisas azedem a sério com a China. Em vez disso temos uma guerra à nossa porta e um vizinho gigante com quem até nos dávamos bem, mas que agora acha, com alguma razão, que somos uns troca-tintas irresponsáveis. Bom trabalho!

E a propósito, se a China quisesse instalar uma base militar algures nas Caraíbas, com mísseis nucleares, que fariam os EUA? À luz da doutrina Monroe, que determina que nenhuma outra potência rival longínqua pode ter uma presença militar no Hemisfério Ocidental (i.e. Américas) os EUA opor-se-iam até à morte. O que se entende perfeitamente. E por acaso, até aconteceu.

O mundo tem hoje três grandes potências: a China, que quer obviamente ser top dog mas talvez ainda não se sinta suficientemente confiante para avançar assumidamente para esse objectivo. Os EUA, que são o actual top dog e já afirmam publicamente a sua intenção de conter a China. E a Rússia, que é uma grande potência, mas não aspira a ser top dog. Que deve o Ocidente fazer? Aliar-se à Rússia ou deixar que esta se alie à China? A resposta parece óbvia, mas os americanos estavam tão embriagados com o seu estatuto de única grande potência que não viram isto. Agora é muito difícil, claro. O que significa que a primeira grande potência, os EUA, pode vir a ter as outras duas como rivais hostis. Vai ter uma vida muito difícil, a menos que consiga de alguma maneira compôr a relação com a Rússia. Mas só depois de Putin sair.

Não é difícil imaginar que Xi Jinping esteja a seguir tudo isto com grande interesse. Tenta identificar sinais de fraqueza e de inconsistência no Ocidente que possam ser úteis para a China. Não que esteja com pena da Ucrânia, porque evidentemente ele está-se completamente nas tintas para a Ucrânia. Como estão os americanos! Que mundo vai sair daqui? Que Europa? Que UE? Não sei, mas parece problemático que a NATO continue a existir, se os americanos fizerem o famoso pivot to China. A Europa, ou a UE, pode ficar orfã e com a sua segurança seriamente comprometida. A situação energética vai quase de certeza complicar-se muito, sem o gás russo e tendo-se tolamente apostado tudo nas energias renováveis. Boa sorte a alimentar indústrias com geradores eólicos e painéis solares. Não vai funcionar, como toda a gente sabe, e vai custar uma montanha de dinheiro.

Como vai esta história acabar? Não sei. É fácil imaginar que Xi Jinping vai continuar a assistir, certamente satisfeito com este triste espectáculo e talvez reflectindo que o século da Humilhação, infligida aos chineses pelos Ocidentais desde meados do século XIX a meados do século XX, está perto de ser vingado. De resto, claro que há vários cenários possíveis. É impossível ter certezas absolutas, mas não acredito na guerra nuclear. Se Putin quisesse lançar os mísseis nucleares não o iria certamente anunciar previamente. Também não acredito que as sanções o verguem. Putin sabia perfeitamente que haveria sanções e teve 8 anos para se para se preparar para elas. Mas com uma mudança significativa no equilíbrio mundial de poderes muita coisa pode acontecer rapidamente. É certo que a China poderá ter os americanos à perna e o poderio militar (e não só) americano continua a ser considerável. E a esfera de influência americana naquela região é ainda poderosa. A China talvez espere mais um pouco. Mas não muito. E se aos americanos faltar a vontade, se continuarem internamente super polarizados a discutir o sexo dos anjos, se as suas grandes Universidades e grandes media outlets passarem definitivamente a ser ninhos de wokeness, por outras palavras se abandonarem os valores que os fizeram ricos e poderosos, quando acordarem será tarde. O centro do mundo já terá mudado para a Ásia. O Ocidente será um recreio bonito para chinês brincar e tirar selfies. Afinal de contas, tudo tem um fim.