Há dias, pude ler no Observador um interessante artigo sobre a tragédia ucraniana de 1932-1933, assinado por Francisco Lopes Matias. Saudando desde já o autor pela notável dedicação ao estudo da questão, o nosso propósito é aduzir uma série de factos (não mencionados), e teias de relações entre os diagnósticos, prescrições e decisões de Estaline e o contexto e os eventos e resultados em fluxo em 1929-1933 (não exploradas), à luz dos quais a interpretação geral que o artigo veicula mereceria revisão.
Essa interpretação, que por influenciar decisivamente a discussão pública sobre o assunto no Ocidente merece escrutínio redobrado, pretende que:
1) Na génese da tragédia esteve um plano dogmático de transformação do campo soviético ditado pela ideologia comunista (“No ano de 1929…Stalin decretou a entrega imediata de toda e qualquer propriedade ao Estado Soviético”);
2) Estaline seguiu esse plano com inflexibilidade fanática, isto é, revelando absoluto desprezo pelas circunstâncias e consequências na sua introdução e prossecução (“Enquanto as valas comuns se enchiam de corpos…o trigo de que o povo ucraniano era privado enchia os cofres da URSS, batendo os recordes de exportação…”);
3) A fome ucraniana de 1932-1933 foi um castigo imposto por Estaline a esse povo pelo seu papel especial no fracasso desse plano (“Como represália pelo fracasso no plano megalómano que ele mesmo ordenara, Stalin usou a fome para castigar o povo ucraniano”).
Revejamos a génese, as dinâmicas e os efeitos dos eventos trágicos de 1932-1933.
Por Abril de 1929, os estalinistas desvendaram o seu programa rural-agrário: reunir até 1932-1933 em “quintas socializadas não-estatais” (kolkhozy) experimentais acessíveis em primeira instância às agências estatais de abastecimento, usando como método a persuasão, 17,5% das terras aráveis e 25% das famílias camponesas; e deter e expropriar, revertendo as terras e os meios de produção a favor de “quintas socializadas estatais” (sovkhozy) que produziriam exclusivamente para as agências estatais de abastecimento, os camponeses ricos (kulaks) que tentassem demover os camponeses remediados e pobres de aderir à colectivização.
Durante o Verão, os estalinistas conquistaram dois apoiantes de peso – que estavam longe de controlar – para esse programa: a liderança militar, preocupada com a preparação da frente interna para um ataque militar polaco-romeno – segundo a intelligence militar (GRU), cada vez mais provável –, reconheceu estar perante uma oportunidade para remover o calcanhar de Aquiles que vinha minando os esforços de guerra de todas as autoridades político-militares operando nos territórios do Império Russo no século XX – o domínio do circuito produtivo-comercial rural-urbano, incluindo a distribuição de alimentos às cidades e forças militares, por camponeses com espaço para perseguir interesses e agendas dissonantes dos interesses e agendas dessas autoridades; e a polícia política (OGPU) deixou-se persuadir pela oferta de jurisdição exclusiva sobre o processamento carcerário dos kulaks.
Em Novembro de 1929, os estalinistas anunciaram um crescimento “espontâneo” – na prática, locomovido pelos líderes locais – da colectivização muito acima do previsto: entre Junho e Outubro, a taxa de famílias camponesas reunidas em kolkhozy tinha subido de 3,6% para 7,6%. Ao mesmo tempo, os estalinistas reportaram que não havia evidências de que o processo estivesse a prejudicar significativamente os trabalhos agrícolas – a colheita de cereais tinha-se saldado em 71,7 milhões de toneladas, contra os 73,3 milhões registados em 1928 (há vários anos que os dados da colheita incorporavam um factor de inflação que podia ir até aos 20%); mas havia bastas provas, nomeadamente 1400 casos de fogo-posto e 384 assassinatos perpetrados contra envolvidos na agricultura socializada desde o início do ano, de que os kulaks “resistiriam furiosamente” àquele “progresso”. Em função desse diagnóstico, os estalinistas anunciaram uma “Grande Viragem” na política rural-agrária: tinha chegado a hora de dar um “empurrão histórico” ao “movimento colectivizador”, organizando-o pelo topo e complementando-o com o abandono da “política compromissória” da restrição das tendências exploradoras dos kulaks e a adopção de uma “política extraordinária” de liquidação dos kulaks como classe.
Foi à planificação das duas campanhas correspondentes – a colectivização e a deskulakização – que os estalinistas se devotaram a partir do início de Dezembro. Ao longo desse mês, uma Comissão do Politburo co-coordenada por Estaline e Molotov foi definindo os termos gerais: o essencial das campanhas teria que ocorrer até ao início da época semeio de 1930, de modo a não a prejudicar; as campanhas cingir-se-iam aos distritos “produtores e avançados”, isto é, habitados por “nacionalidades avançadas”, e cuja produção agrícola era bastamente superior às necessidades de consumo; cada distrito seria declarado “completamente colectivizado” assim que 50% das suas famílias camponesas tivessem aderido a kolkhozy; e a implementação no terreno estaria a cargo de brigadas de colectivização Partido-Estado-OGPU-trabalhadores.
Ao longo da segunda metade de Dezembro, sem esperar o término dos trabalhos da Comissão, muitos líderes regionais e locais, animados ou por entusiasmo em relação à iniciativa ou por receio de serem acusados de “desvio de Direita” caso permanecessem passivos, começaram a improvisar no terreno versões espontâneas das novas campanhas. A Comissão reagiu aconselhando cautela e paciência até o plano final estar concluído.
A 5 de Janeiro, o plano foi revelado: além dos parâmetros de Dezembro, estipulava-se que 25% das terras aráveis e 25% das famílias camponesas deveriam estar reunidas em kolkhozy até ao final de 1930 (em vez dos 17,5% e 25% até 1932-1933 previstos em Abril de 1929); e que o plano deveria ser aplicado seguindo uma lógica sequencial – primeiro, as brigadas deskulakizariam a aldeia em causa “recomendando” aos sovietes locais que accionassem o processo de expropriação e/ou detenção, e, segundo, com a aldeia “libertada” da influência perniciosa desses “notáveis locais capitalistas”, os restantes camponeses seriam reunidos em assembleia e convencidos, através de persuasão, a aderir aos kolkhozy.
Seguiu-se um vendaval de descoordenação política. Pelo início de Fevereiro, a Comissão viu-se inundada de relatórios denunciando uma orgia de “excessos e desvios” em relação ao plano. Em concreto, a colectivização-deskulakização estava a ser aplicada mesmo em distritos “consumidores” e “atrasados” (onde desde o final de Dezembro vinham operando “brigadas de colectivização espontâneas”); e, apesar de nova Comissão do Politburo ter acabado de entregar o exclusivo jurisdicional do processamento criminal dos kulaks ao OGPU (em substituição dos sovietes locais), para separar as águas, muitos implementadores continuavam a recorrer aos métodos coercivos reservados aos kulaks para “persuadir” os camponeses a aderir aos kolkhozy, bem como a deskulakizar “indesejáveis locais” que nada tinham a ver com o perfil traçado por Moscovo.
A 20 de Fevereiro, confrontados com uma subida da taxa de famílias colectivizadas para 50%, Estaline e Molotov decidiram colocar um travão num processo saído de controlo. Molotov convocou a Moscovo, e criticou duramente, uma série de líderes regionais e locais envolvidos em “excessos e desvios”. Desses encontros, Molotov retirou que a estratégia estalinista de não definir a priori em que consistiria um kolkhoz para que os limites da quinta colectiva soviética emergissem da prática tinha sido um erro clamoroso, visto que muitos pareciam crer que a utopia “esquerdista” da “comuna rural”, um modelo de “quinta socialista-comunista” baseado na partilha de quase tudo e na planificação meticulosa da vida e do trabalho, era o objectivo imediato. Em resposta, os estalinistas organizaram nova Comissão do Politburo, desta feita com a missão de definir, enfim, o modelo de kolkhoz a implementar. O resultado, revelado a 1 de Março, foi a “Carta-Modelo do Kolkhoz”. A Carta estabelecia a cooperativa de produção (artel) em torno dos cereais como “limite previsível” à construção do Socialismo-Comunismo rural-agrário em condições soviéticas; e estipulava que a extensão a socializar das terras e dos meios de produção se resumiria, respectivamente, aos terrenos de cereais, e às máquinas e ferramentas, aos armazéns, aos cavalos e a uma parte do gado – podendo todas as famílias preservar como propriedade privada uma casa, um quintal, um jardim, uma vaca, e os animais de menor porte que conseguissem arrebanhar. A Carta não previa qualquer comunalização ou planificação do modo de vida e trabalho para além do indispensável ao atingimento de metas de produção e entrega de cereais a definir pelo Estado.
Ora, durante o período de redacção da Carta, Estaline e Molotov foram bombardeados com relatórios denunciando como o poder soviético estava em vias de colapsar em alguns distritos, em particular nas periferias da Ucrânia, do Cáucaso e da Ásia Central estabilizadas a custo após a Guerra Civil, às mãos de uma enxurrada de “resistência furiosa”, marcada por fugas massivas de potenciais kulaks e pelo extermínio dos próprios animais como meio de protesto, por camponeses revoltados com os métodos coercivos e os objectivos maximalistas utilizados e perfilhados por muitas brigadas de colectivização.
A 2 de Março, num exercício de auto-desresponsabilização política escandaloso, Estaline publicou um editorial bombástico em que admitia, condenava taxativamente, e atribuía aos líderes regionais e locais quatro tipos de “excessos e desvios” em relação à “linha do Partido” para o campo: a violação do princípio da voluntariedade da adesão aos kolkhozy; a colectivização de distritos “consumidores” e/ou “atrasados”; a obsessão com o ideal esquerdista de “comuna rural”; e os ataques gratuitos às Igrejas. Nos dias seguintes, para evitar o descarrilamento das épocas de semeio e colheita de 1930, os estalinistas ordenaram o cancelamento da campanha de colectivização (a taxa cairia de 57% para 28% até ao final da Primavera); e uma extensão a todo o território da campanha de deskulakização. Pelo final de Maio, Molotov afirmou publicamente que tão cedo não haveria condições para relançar a colectivização.
Os estalinistas mudaram radicalmente de opinião até ao final de Setembro. Primeiro, porque Estaline interpretou o agudizar galopante da crise capitalista sobrevinda no Inverno de 1929-1930 como uma janela de oportunidades histórica indesperdiçável para que a União Soviética reduzisse drasticamente o fosso em termos de poderio industrial-militar em relação às grandes potências capitalistas – e assim assegurasse não só a sua sobrevivência, mas a possibilidade de se bater com o campo capitalista, a curto-médio prazo, pela “vitória final” da causa socialista-comunista. E, segundo, porque, apesar de todas as perturbações, a colheita de 1930 revelou-se, a reboque de factores climatéricos óptimos, excelente (83,5 milhões de toneladas).
Pelo início de Outubro, os estalinistas decidiram acelerar o ritmo do plano de industrialização, urbanização e militarização em curso ao máximo expoente possível. A alavanca desse processo seria a imposição ao campo de uma nova política de extracção desenfreada de mão-de-obra e bens primários para alimentar o crescimento das cidades, exportar (em troca de técnicos e maquinaria estrangeiros na vanguarda tecnológica), e reforçar os fundos de cereais de emergência para um conflito militar. Em concreto, seguiu-se uma ordem para avançar com uma super-campanha de colectivização-deskulakização válida para todos os distritos da União Soviética. O propósito seria reunir em kolkhozy doravante obrigados a entregar uma quota de cereais e batatas (a produzir em comum) e de carne e lacticínios (a produzir em privado) às agências estatais de abastecimento, tão rápido quanto possível e se necessário recorrendo à coerção, o máximo possível de famílias camponesas.
Estaline estava convencido de que proibindo veleidades utópicas esquerdistas os camponeses se resignariam. Tal não sucedeu. Pelo contrário, o ano agrícola de 1930-1931, para além de uma seca extrema, foi marcado em quase todo o país por resistência camponesa furiosa.
A factura da convergência das duas circunstâncias chegou em Setembro de 1931, quando, em choque, os estalinistas receberam a notícia de que a colheita tinha caído a pique – no caso dos cereais, de 83,5 milhões para 69,5 milhões de toneladas. Para Estaline, o projecto histórico de aproveitar a “Grande Depressão” para reduzir drasticamente o fosso em relação às potências capitalistas estava em vias de colapsar.
Apesar de renitente, Estaline cedeu às evidências quando, num Plenário do Comité Central em Outubro, foi confrontado com súplicas desesperadas dos líderes regionais do Volga Central, do Baixo Volga e do Cazaquistão, todos a braços com surtos de fome, para que baixasse as metas agrícolas para 1931-1932 (calculadas com base nos resultados da colheita de 1930). O resultado da negociação subsequente foi uma redução de 2 milhões de toneladas nas metas de cereais para essas três regiões; mas também a oneração da Ucrânia e do Cáucaso Norte – as regiões cerealíferas de excelência, além disso menos afectadas pela seca e sem surtos de fome – com acréscimos proporcionais nas suas metas.
Estavam as coisas neste ponto quando, ainda em Outubro, Estaline foi informado de que o Exército expedicionário japonês de Kwantung, há semanas em manobras que indiciavam uma intenção de expansão da sua legítima base nessa região, estava não apenas apostado mas em vias de conquistar toda a Manchúria. Em Novembro, Estaline produziu um parecer sobre o assunto. Segundo Estaline, o governo japonês nunca se atreveria a tal sem o aval das grandes potências capitalistas, que estariam a tentar regular a agudização brutal da luta intra-capitalista e inter-imperialista por matérias-primas e mercados precipitada pela “Grande Depressão” sacrificando os “elos mais fracos” do sistema internacional. Ora, além de odiada por todos, a União Soviética ainda era vista como uma potência vulnerável; e as suas regiões da Sibéria Ocidental, da Sibéria Oriental e do Extremo-Oriente deviriam muito facilmente acessíveis ao expansionismo japonês (que já tinha ocupado a última entre 1918 e 1922) caso o Exército de Kwantung acrescentasse à Manchúria o tampão geoestratégico vital da Mongólia. Em Dezembro, a GRU interceptou uma carta enviada pelo adido militar japonês em Moscovo, Yukio Kasahara, à liderança militar japonesa em Tóquio, incitando-a a avançar nesse sentido o mais depressa possível – em concreto, antes do Plano Quinquenal dotar a União Soviética de meios de defesa adequados. Kasahara terminava vaticinando “sucesso garantido” em virtude das “elevadas probabilidades de apoio activo por parte de alguns países nas fronteiras ocidentais da União Soviética”. Para os especialistas da GRU, Kasahara estava a aludir à iminência de materialização de uma coligação militar anti-soviética reunindo o Japão, a Polónia e a Roménia.
Um ataque militar nipónico-polaco-romeno passou a ser o principal pesadelo de Estaline. Em conjunto com a liderança militar, e depois de informado de que o Exército Vermelho não dispunha nas regiões asiáticas de meios em quantidade e qualidade minimamente suficientes para dissuadir o Exército de Kwantung, Estaline ordenou uma transferência tão substancial e lesta quanto possível de efectivos e equipamentos nas regiões interiores para o Distrito Militar do Extremo-Oriente; e incumbiu o Comissário dos Negócios Estrangeiros, Litvinov, de usar todos os expedientes diplomáticos para forçar o Japão, a Polónia e a Roménia a assumir um compromisso público com a renúncia ao instrumento da guerra vis-à-vis a União Soviética.
A decisão de Estaline originou um problema logístico grave: a região do Extremo-Oriente era uma região “consumidora”, significativamente deficitária em bens agrícolas; para alimentar o enorme contingente que aí se concentraria, seria necessário reservar no resto do país, e transferir atempadamente, grandes quantidades de alimentos. Uma vez mais, Estaline voltou-se para a Ucrânia e o Cáucaso Norte, exigindo entregas adicionais de cereais.
Só que a colheita de 1931 tinha sido tão fraca, e os camponeses já tinham exterminado tantos animais (assim perdidos como alternativa dietética de último recurso em tempos de penúria), que em vez de uma dinâmica de preparação para dissuadir ou enfrentar um conflito externo, os primeiros meses de 1932 foram dominados por um quase-colapso do circuito produtivo-comercial rural-urbano. Por Abril, bolsas de fome e escassez de bens essenciais, na génese de marchas, protestos, greves e até rebeliões (a mais grave envolvendo uma cidade inteira, Vichuga, relativamente próxima de Moscovo), espalharam-se pelo país.
Estaline reagiu decretando uma série de medidas de emergência especificamente calculadas para reanimar o circuito produtivo-comercial rural-urbano – e assim evitar um alastramento da fome, em particular nas áreas mais afectadas, que eram agora os distritos rurais da Ucrânia, do Cáucaso Norte, do Volga Central, do Baixo Volga e do Cazaquistão, que pudesse ser aproveitado pelo Japão, a Polónia e a Roménia como um “pretexto” e um “agente facilitador” para uma invasão. Primeiro, as rações de pão para a larga maioria dos habitantes urbanos e para os militares foram cortadas em, respectivamente, 30% a 50% e 16%. Segundo, Estaline, que tinha previsto reservar 2,87 milhões de toneladas de cereais para essa finalidade em 1932, e que tinha disponíveis 2 milhões de toneladas para esse efeito nesse momento, autorizou a disponibilização dos fundos de cereais, além de importações cirúrgicas secretas do Irão, para combater a fome durante o período crítico entre o final da época de semeio e o início da época da colheita, isto é, entre Maio e Julho (por Julho de 1932, os fundos estariam reduzidos a 635 mil toneladas; no período homólogo do ano seguinte, pelas mesmas razões, 2,23 milhões de toneladas de cereais, ou 78% do total nos fundos, seriam disponibilizados, incluindo na Ucrânia e no Cáucaso Norte, para o mesmo fim). Terceiro, Estaline autorizou que as metas exorbitantes impostas à Ucrânia e ao Cáucaso Norte em razão das contingências emergidas em Outubro-Dezembro de 1931 fossem sendo aliviadas o suficiente para que os líderes, dirigentes e camponeses enfrentassem a colheita vindoura em condições físicas e motivacionais mínimas (pelo final da colheita, a redução da meta da Ucrânia em relação à meta original para 1932 ascenderia a 35%). Quarto, todos os habitantes foram autorizados a cultivar quintais privados para consumo próprio. Quinto, foi concedido aos camponeses o privilégio exclusivo de comercializarem os seus excedentes em mercados isentos de impostos e regulamentações estatais. E, sexto, Estaline ordenou que a exportação desenfreada de cereais em troca de técnicos e maquinaria estrangeiros fosse, na máxima medida possível (atendendo aos compromissos já assumidos), cancelada (entre 1931-1932 e 1932-1933, o Comissariado do Comércio Externo reduziria a exportação de cereais de 4,7 milhões para 1,61 milhões de toneladas – o último valor correspondendo a 18% da quantidade de cereais exportada pelo Império Russo em 1913, e a uma quantidade significativamente abaixo da exportada nos anos soviéticos de 1923-1924, 1925-1926 e 1926-1927).
As medidas só não chegariam tragicamente tarde se, como Estaline cria piamente em razão da melhoria nas condições climatéricas, a colheita de 1932 fosse um sucesso. Seria um desastre.
Em Julho, depois de Litvinov ter arrancado um Pacto de Não-Agressão à Polónia, Estaline foi informado de que o governo polaco tinha admitido que o país vinha infiltrando e recrutando sabotadores e espiões na Ucrânia. Em Agosto, começaram a chover relatos de que a colheita estava a revelar-se promissória nos territórios decisivos, incluindo regiões tão atormentadas pela fome como o Volga Central e o Baixo Volga (habitados sobretudo por russos), excepto na Ucrânia e Cáucaso Norte (maioritariamente habitados por ucranianos). Estaline reagiu decretando que seriam expropriados e fuzilados ou detidos em campos de concentração os camponeses que tentassem roubar ou sabotar meios de produção ou produção da agricultura socializada; e ordenando que a Ucrânia e o Cáucaso Norte fossem um exemplo na aplicação do decreto.
Como os números da Ucrânia e do Cáucaso Norte não revelaram qualquer melhoria, Estaline começou a desenvolver a teoria segundo a qual boa parte dos líderes, dirigentes e camponeses ucranianos se tinham deixado corromper pelo “vírus do nacionalismo burguês”; e estavam apostados em desestabilizar a frente interna soviética, abrindo assim caminho a uma invasão externa da qual esperavam independência nacional, através do expediente, que Estaline tinha visto praticado durante a Guerra Civil, da ocultação de “reservas secretas de cereais” (desta vez, na interpretação sórdida de Estaline, sob a “cortina de fumo” de “simulacros de fome”).
Em Outubro, quando foram conhecidos os resultados da colheita, uns míseros 69,8 milhões de toneladas nos cereais, Estaline reagiu em fúria – a evolução dos surtos crescentes de fome em expansão desde o Inverno de 1931-1932 para uma fome de proporções gigantescas tinha-se tornado praticamente inevitável, e o impacto desse desenvolvimento na sobrevivência da União Soviética e na viabilidade do projecto histórico estalinista era imprevisível.
A sua resposta foi a orquestração de uma campanha de repressão calculada para “liquidar de vez” a resistência camponesa em geral e a “conspiração ucraniana” em particular. Primeiro, a campanha cominava a subjugação directa de todos os aparatos de governação agrícola locais ao Departamento de Agricultura do Comité Central (em Moscovo). Na Ucrânia e no Cáucaso Norte acresceria a essa medida uma purga irrestrita dos aparatos partidário e estatal, e a deportação em massa de cossacos. Segundo, seriam introduzidos controlos sobre os fluxos migratórios em todo o país, incluindo um sistema de passaportes e permissões de residência para as cidades (uma medida que vinha sendo debatida há meses, depois de um êxodo rural descontrolado – mais de 6,5 milhões de pessoas entre o início de 1930 e a Primavera de 1932 – ter gerado o caos nas condições de vida e abastecimento da maioria das cidades). A Ucrânia e o Cáucaso Norte, porém, seriam alvo de controlos muito mais drásticos: os seus territórios seriam cercados por cordões policiais e para-militares; e as lojas estatais, cooperativas de distribuição e mercados livres seriam encerrados nas jurisdições cujas aldeias não tivessem cumprido, ou não cumprissem entretanto “entregando as suas reservas secretas”, as metas de entregas de cereais.
O que seguiu até Maio-Junho de 1933 foi um apocalipse humanitário desproporcionalmente, mas não exclusivamente, centrado na Ucrânia e no Cáucaso Norte.
Do ponto de vista moralmente inenarrável de Estaline, porém, o resultado final foi “positivo”: pelo Verão, toda e qualquer resistência ou conspiração camponesa cessara; e, numa tenebrosa relação de causa-efeito nunca explicitamente admitida por nenhum líder estalinista (por razões óbvias), as “mortes em excesso”, entre os Verões de 1931 e 1933, de 3,5 a 3,8 milhões de pessoas na Ucrânia e 500 mil pessoas no Cáucaso Norte (a esmagadora maioria ucranianos), de entre 300 a 400 mil pessoas no Volga Central e no Baixo Volga (maioritariamente russos), e de cerca de 1,5 milhões de pessoas no Cazaquistão (de todas as nacionalidades, incluindo um terço da população nativa), tinha removido como “fardo” para o sistema distributivo uma massa de camponeses que a excepcional colheita de 1933 (89,8 milhões de toneladas) revelaria não-essenciais ao sistema produtivo.
O que de tudo isto resulta em termos de pertinência de revisão do argumento inicialmente mencionado parece-nos ser o seguinte:
1) Na génese da tragédia esteve um plano em evolução de transformação do campo soviético, independentemente do nível de “avanço” em direcção ao ideal comunista envolvido, que permitisse ao regime dominar o circuito produtivo-comercial rural-urbano para o converter na alavanca de um processo de industrialização-urbanização-militarização ditado por um cálculo geoestratégico (o imperativo de aproximação “relâmpago” ao poderio industrial-militar das grandes potências capitalistas).
2) Estaline foi calibrando e revendo esse plano, protagonizando avanços e recuos e lançando mão de medidas de contenção e emergência (incluindo reduzir drasticamente as exportações de cereais para combater a fome), conforme as circunstâncias e as consequências associadas à sua introdução e prossecução.
3) Uma vaga terrível de fome já estava em curso, ao arrepio das intenções de Estaline, e não só entre os ucranianos mas entre vários povos (incluindo o russo), quando Estaline decidiu atribuir a esse povo um papel especial na ameaça ao seu plano; e torná-lo num alvo particular (mas não exclusivo) de uma campanha de repressão que, como o autor relata expressivamente no seu artigo, contribuiu decisivamente para transformar boa parte da Ucrânia e do Cáucaso Norte, entre Novembro de 1932 e Junho de 1933, num inferno.