A prática de actos gratuitos em saúde, sendo algo tido por frequente e normal no mercado, não é, de todo, uma medida altruísta. Não visa, em momento algum, garantir o acesso universal e equitativo aos cuidados médicos. Pelo contrário, trata-se de uma estratégia comercial deliberada, através da qual médicos e gestores procuram angariar clientes (em vez de tratar pacientes) para fazer crescer o seu negócio. A oferta de serviços gratuitos ou a preços artificialmente baixos não é um gesto de solidariedade, mas uma manobra de dumping para distorcer o mercado, violar a concorrência e prestar cuidados de saúde a baixo custo e de má qualidade.

A única forma de combater esta distorção é com regulação, fiscalização proactiva e rigorosa e responsabilização das entidades da tutela (ordens profissionais de saúde, ministério da saúde, entidades reguladoras), para garantir que o sector privado da saúde funcione tendo por fim último a saúde pública, e não o lucro. Veja-se, a título de exemplo, a promiscuidade de uma ordem profissional aceitar patrocínios e celebrar protocolos com empresas que promovem este tipo de práticas, apesar dos inúmeros alertas de vários dos seus membros (incluindo dirigentes de corpos sociais). Se os nossos próprios representantes não combatem diligentemente esta praga, que mensagem estamos a transmitir à população?

As empresas que praticam actos gratuitos ou extremamente baratos criam uma distorção no mercado, prejudicando outros prestadores de saúde que operam de forma idónea e responsável. Ao baixar os preços de maneira artificial, essas clínicas inviabilizam a concorrência saudável e tentam monopolizar o mercado. O resultado? Um sistema de saúde onde a qualidade é comprometida em nome de uma disputa comercial feroz.

A baixa qualidade é o verdadeiro custo da permissividade de atos gratuitos em saúde, em honra da liberdade contratual dos actores privados. O cuidado prestado não pode ser o mesmo numa clínica que prioriza o volume de clientes e lucros, sem investir na formação contínua dos seus profissionais, na qualidade dos equipamentos ou na segurança do paciente. A pressão para cortar custos tem como consequência directa tratamentos médicos menos eficazes e práticas médicas questionáveis.

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Sob o ponto de vista do profissional de saúde contratado ou prestador de serviços, isto resulta na sua exploração, face a um mercado absolutamente saturado e sem soluções de empregabilidade: vêem-se forçados a trabalhar com salários abaixo do valor justo e numa carga de trabalho exaustiva, o que compromete tanto a sua dignidade profissional quanto a qualidade do atendimento oferecido. O resultado é um ciclo vicioso de exaustão, pobreza, desmotivação e burnout, que coloca em risco tanto a saúde dos pacientes quanto o bem-estar dos trabalhadores. Muito raramente, ao contrário do que se possa pensar, é o médico remunerado por alguma dessas práticas. Se atendermos aos números mais recentes da emigração e de suspensão de cédulas profissionais, perceberemos rapidamente este efeito.

A prática de atos gratuitos em saúde também é uma violação directa de várias normas legais, mas, aparentemente, a aplicabilidade da lei neste sector é sonegada para dar voz a outros interesses.

A Constituição garante o direito à saúde, mas também estabelece que este direito deve ser exercido com base em equidade e qualidade. Quando se oferecem serviços gratuitos sem qualquer consideração pela sustentabilidade ou qualidade do serviço prestado, está-se, efetivamente, a comprometer os direitos dos cidadãos, criando um sistema de saúde distorcido onde a equidade é apenas uma ilusão.

O Código das Sociedades Comerciais exige que as sociedades actuem de acordo com princípios de responsabilidade financeira. Ao operar com preços artificialmente baixos, desrespeitam normas de boa-fé e gestão responsável, comprometendo tanto a sua viabilidade financeira quanto a qualidade dos cuidados prestados. Relembro os vários calotes que grandes grupos de medicina dentária presentearam ao Estado português, a fornecedores e trabalhadores, mas sobretudo a cidadãos, que se viram impossibilitados de concluir o seu tratamento, a par de um crédito sobre um serviço não prestado.

A nível europeu, o art.º 101.º do TFUE proíbe práticas anticompetitivas que distorçam o mercado único da União Europeia. O dumping praticado por essas clínicas configura uma violação clara dessa normativa, uma vez que impede que outros prestadores de serviços de saúde, que operam de acordo com as normas legais e de qualidade, concorram em condições justas.

No entanto, a prática de actos gratuitos, acima de tudo, coloca em risco a saúde pública. A operação de clínicas privadas com preços baixos resulta numa oferta de cuidados de saúde insustentável e perigosa. Essas clínicas, ao tentar maximizar os seus lucros através de cortes nos custos, podem estar a oferecer serviços que não cumprem os padrões de qualidade, o que compromete a saúde e a segurança dos pacientes. O paciente deixa de ser uma pessoa a ser cuidada e passa a ser um mero número a ser atendido em massa, sem o devido acompanhamento ou atenção. A qualidade é ignorada em nome do lucro. A relação médico-doente há muito deixou de apelar à formação médica.

As clínicas privadas e os profissionais de saúde que praticam, promovem e publicitam actos gratuitos ou abaixo de custo têm de ser, de uma vez por todas, responsabilizados pela violação das leis de concorrência, pela desvalorização do acto médico, pela violação da dignidade médica e pela perda de confiança da população. A saúde não é um mercado de consumo, é um direito fundamental, e deve ser tratada como tal.