Entendo começar esta crónica trazendo luz a uma série de pontos que me parecem importantes de fazer notar ao leitor: estava tentado a escrever umas linhas sobre o Allen há algum tempo. Não o havia feito porque ainda estava em processo de digestão do seu último álbum, Unplugueto. Refém do processo de vai-não-vai que culmina na infame conclusão de achar que se “tem tempo”, não pensara que, ao fim e ao cabo, sentar-me-ia para escrever acerca do seu obituário artístico. Outro disclaimer que sinto ser importante notar é o seguinte: não sou perito em música e não sou perito em Rap (Allen é, todavia, muito mais que isso). O texto que a seguir terão a oportunidade de ler não passa de uma opinião de um tipo que acredita ter alguma sensibilidade e, sobretudo, admirar o artista em tópico. Assim, convém entender, nada será técnico: não passará da exploração por escrito das sensações que a arte do Allen me faz sentir e nas conceptualizações sociais que a partir daí cristalizo.
Allen Halloween é (ou seja, no presente) várias coisas. Começo por explorar o facto de ser maduro. Allen é maduro. E para se ser maduro significa que em tempos se foi verde e se sofreu um processo de maturação. Penso ser extremamente justo acusarem-me – tendo em conta que venho de um background estável — de uma certa ilegitimidade para tecer comentários acerca da maturação de um homem africano que cresceu em condições miseráveis — xadrez para mim é uma suíte, paredes com cimento na minha casa não existe, é triste. Contudo – apesar de eventualmente suspeitos —, estes ditos comentários são benignos e de profunda admiração pelo homem (aqui, primeiro de que pelo artista). Allen é luz. Não é luz ao fundo do túnel. É luz no início, meio e fim. É o Universo a expressar o exemplo do homem Bom. Com coração. Com sensibilidade. Com erro. Com arrependimento. Que ateou o fogo. Que esteve no fogo. Que cresceu com o fogo. Que percebeu que o fogo não era nada e não levava a lado algum e por isso apagou-o. Que amadureceu; e que, como bom homem, contou-nos a sua história e cantou-nos o seu processo de maturação de forma a ensinar os seus pares pedagogicamente.
Todavia, a principal razão que hoje me senta é outra: explicar o porquê de Halloween não ser só para alguns (aqui, entendam-se as pessoas cuja vida não lhes sorriu desde início e que, por isso, encontraram nas letras de Allen uma estrondosa empatia). Allen é tão grande, tão gigante, tão imensurável que todos nós – todos – temos de olhar para cima para o ouvir. A sua arte é tão autêntica que diz respeito (ou deveria dizer) a todos. Os cancros estruturais que entoa através da sua grossa e cansada voz são como que o esboçar do perfil de muitas vidas do nosso país – marginalizadas, condenadas, infelizes, toxicodependentes, esquecidas, fardos pesados de casamentos falhados. Allen é como que o divino porta-voz desta gente — sem nome — que clama por ser notada (e que, evidentemente, o deveria ser — pois são humanos tal como eu e o leitor). E fá-lo de uma maneira absolutamente divina, poderosa, arrepiante e, sobretudo, autêntica. Aquilo que ele canta é o que ninguém canta: poucos são os que têm um acesso tão escancarado a este tipo de sofrimento e se conseguem emancipar para o materializar em música (e que música…). Aquilo que ele canta é o que só quem cresceu na palhota como ele pode fazer. É intrinsecamente belo por isso: é verdadeiro até às unhas dos pés. Halloween é a expressão de que esta gente existe… e chora, sorri, sofre, e pensa… e berra de agonia… mas ninguém ouve irmão.
E é por isso, caro leitor, que Allen é para todos. Portugal precisa urgentemente de o ouvir: do beto ao guna, do rural ao cosmopolita, do patrão ao empregado, da Igreja ao Estado. É absolutamente necessário ouvir o outro. Nesse sentido, apesar de felizmente por norma não vivermos estas realidades, devemos (re)conhecê-las, sentir a sua agonia e procurar ajudar estas almas: quando a vossa cruz parecer pesada, procurem compartilhar a cruz do outro. As cruzes dos “ninguéns” a quem Halloween da voz são cruzes maiores que muitos das nossas – se tu sofreste eles sofreram muito mais. E Halloween, através da sua música, completou a tarefa de as iluminar. É aqui que se destaca dos demais, competindo sozinho numa pista só dele: o seu trabalho é tao genialmente conseguido que consegue fazer viajar pessoas com vidas celestes para uma realidade escura, degradada e real – a sua. E isso, meus caros, só se consegue quando se é realmente munido de algo que outros não têm: dom.
A bruxa decidiu ir. Pediu-nos que apagássemos a luz. Allen, desculpa: há luzes que não se apagam. A tua é uma. Mesmo que já não queiras, a tua luz continuará a ser a pouca iluminação de muitas almas perdidas que vagueiam nas streets. Obrigado por isso.