Apesar de já se terem praticamente esgotado as palavras sobre o impacto do anúncio pelo primeiro-ministro (PM) do fim do regime dos residentes não habituais (RNH), não resisto a partilhar algumas das minhas perplexidades, quanto à forma e quanto às motivações deste anúncio.
Quanto à forma
É difícil entender como é que uma medida com este alcance é anunciada no meio de uma entrevista televisiva, sem qualquer contextualização (ou, estou em crer, base) técnica, e sem qualquer visibilidade quer quanto às motivações, quer quanto ao efeito que se espera retirar da mesma.
É também difícil entender a expressão utilizada: “injustiça fiscal”. Na verdade, esta “injustiça” não é uma herança de um governo anterior da oposição (já longínquo) ou uma imposição de agentes externos. A “injustiça” é um regime fiscal que existe desde 2009, criado por um governo PS e mantido (praticamente inalterado) com uma estabilidade que é rara no ordenamento jurídico português.
António Costa convive, pois, com esta “injustiça fiscal” desde que é PM (há 8 anos) e agora entendeu que a mesma simplesmente “deixou de fazer sentido”.
Quanto às motivações
Por coincidência ou não, o fim do regime dos RNH foi anunciado a propósito de uma pergunta sobre a crise da habitação. A ideia está passada: são os estrangeiros os responsáveis pela crise habitacional, ficam-nos com as casas, inflacionam as rendas e o preço das mesmas.
Acredito que a imigração condicione dinâmicas de mercado, inclusive do imobiliário, mas será que o saldo é negativo? O próprio PM reconheceu que o investimento estrangeiro foi importante. Porque é que agora deixou de o ser? E a receita fiscal que esse investimento gera é despicienda? IMT, IMI, AIMI, IRS (nas rendas e nas vendas), IVA na construção/reabilitação. Na verdade, em matéria de investimento imobiliário em Portugal, os RNH são tributados como qualquer outro residente fiscal.
Ainda se diz que o nosso Governo reage à pressão de “instâncias europeias”. Aqui, pagaremos o preço de um voluntarismo avant la lettre quando o nosso regime acaba, mantendo-se regimes com características idênticas em Espanha, em França (com um regime fiscal atrativo para os chamados “impatriados” ) ou em Itália… Para não irmos mais longe. De facto, a generalidade dos países europeus contempla regimes de atratividade fiscal de talento e/ou com vista à dinamização de zonas desertificadas.
Também parece caricata a sensibilidade à pressão que vem de fora, quando ainda há algum tempo atrás este Governo se absteve de ratificar o acordo assinado com a Suécia, em 2019, para aplicar IRS aos pensionistas suecos a residir em Portugal. A inércia do Governo português acabou por esgotar a paciência da Suécia que, unilateralmente, anunciou o fim da convenção fiscal que havia sido celebrada com Portugal em 2002.
O regime RNH também parece contagiado pela má reputação do Golden Visa (que, mal ou bem, lá vai sobrevivendo…) . Mas na verdade, um regime não envolve a aplicação do outro. Um RNH é alguém que fixa a sua residência em Portugal. O Golden Visa permite o acesso à residência sem praticamente nenhum requisito de permanência em território português.
É notório que o regime RNH é mal percecionado. De facto, quando falo com não fiscalistas constato que são raras as pessoas que entendem as características do regime ou a natureza das ditas “borlas” que o mesmo oferece que, na verdade, são limitadas. Trata-se de um regime temporário, não prorrogável, e que não confere uma isenção sobre a generalidade dos rendimentos.
E será mesmo o fim do regime ?
Depois do inesperado e bombástico anúncio do fim da “injustiça fiscal”, eis que nos chega às mãos a Proposta do Orçamento do Estado para 2024 (POE), com a ilusão de que o regime RNH é apenas substituído por um regime idêntico.
Na verdade, mantêm-se algumas das características do regime dos RNH – condições de acesso, duração, e até a taxa especial dos 20% – mas, em seu lugar, é apenas criado um “incentivo fiscal à investigação científica e inovação”, exclusivamente destinado a atrair profissionais de carreiras docentes de ensino superior e de investigação científica, postos de trabalho qualificados e a atuar no domínio da investigação e desenvolvimento, sujeitos a um processo de certificação complexo.
Circunscreve-se, assim, o benefício fiscal a um conjunto delimitado de profissionais, antecipando-se que o mesmo não venha a assumir impacto significativo na atração de novos residentes. Ao mesmo tempo, excluem-se da aplicação do regime de atratividade fiscal português outros novos residentes que tenham atividade profissional fora destes domínios, com particular ênfase para os quadros superiores de empresas. Ficam igualmente excluídos deste novo regime os pensionistas ou os investidores.
Enfim, haverá sempre apoiantes e detratores do regime RNH, mas o que seria importante é que a manutenção ou o fim do mesmo não fosse ditada pela “espuma dos dias”, como parece ter sido o caso, mas antes com base em dados concretos, estudados e mensuráveis. Como alertou, e bem, o Tribunal de Contas, no tal parecer que oportunamente saiu uns dias após do anúncio do PM: “Apesar de ser essencial o apuramento completo da despesa fiscal, para que se possa avaliar a atualidade e eficácia dos benefícios, pelo confronto entre o seu custo e os objetivos extrafiscais que visam atingir, a Unidade Técnica [i.e., para levantamento de benefícios fiscais anunciada pela Secretária de Estado do Orçamento] prevista desde 2020 para, entre outros objetivos, fazer essa avaliação não se encontra operacional.”